29 janeiro, 2010

Um vilão para a Rodada Doha

Um vilão para a Rodada Doha

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Os EUA precisam entender que a não conclusão da Rodada Doha ameaça o sistema de regras construído há mais de 60 anos
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NOS ANOS 1950, o escritor norte-americano dr. Seuss publicou o livro infantil "Como o Grinch Roubou o Natal". A obra narra a aventura da curiosa criatura vilã que, por detestar o espírito natalino, planeja frustrar a celebração de uma pequena vila roubando-lhe, na véspera, os presentes. Tal como o Grinch, os EUA converteram-se no principal vilão da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), ao roubar-lhe a possibilidade de conclusão.
Desde o colapso da última tentativa de acordo, em julho de 2008, a negociação multilateral permanece em compasso de espera. A conclusão do processo eleitoral norte-americano e os compromissos dos líderes do G20 em favor de um acordo não foram suficientes para alterar essa situação. De forma diferente do que boa parte da imprensa, da academia e do setor privado dos EUA alardeiam, a paralisação da rodada não está no suposto comportamento obstrucionista de países como Brasil, China e Índia, mas na ausência de liderança norte-americana.
Na reunião de julho de 2008, o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, apresentou proposta para concluir a barganha central da negociação: o desmantelamento de parte significativa do aparato protecionista agrícola dos países desenvolvidos em troca de maior abertura do mercado industrial dos países em desenvolvimento.
Para alguns negociadores e representantes empresariais de países desenvolvidos, o "pacote Lamy" parecia insuficiente. Alegavam que os compromissos se traduziriam em pouco acesso real a novos mercados. Afirmavam que boa parte da redução de tarifas na área industrial se daria no nível "consolidado" na OMC, sem atingir, portanto, tarifas de fato aplicadas. E que, em matéria agrícola, haveria retrocesso na abertura de mercados em países emergentes da Ásia.
De uma perspectiva de longo prazo, o pacote reunia três virtudes. Primeiro, contribuía para a correção do desequilíbrio histórico entre a abertura dos mercados agrícolas e industriais.
Segundo, continha compromissos de liberalização mais ambiciosos do que os atingidos em qualquer negociação multilateral anterior. Terceiro, atendia, em geral, às demandas por abertura e proteção das principais potências comerciais.
O colapso da reunião deveu-se, em particular, à falta de convergência entre os EUA e a Índia sobre certos mecanismos de acionamento da salvaguarda agrícola para países em desenvolvimento. Desde então, ambos passaram por processos eleitorais com impacto diferenciado sobre a rodada.
O novo governo indiano foi rápido em demonstrar interesse em concluí-la ao convocar reunião de ministros de comércio em Nova Déli.
Já a administração Obama foi igualmente rápida em baixar a intensidade do tema no país, direcionando seu capital político para a agenda de reformas domésticas.
Obama não é protecionista, mas entende que, na conjuntura de crise e desemprego, a agenda comercial pode contaminar o processo legislativo de aprovação da reforma do sistema de saúde e da nova lei de energia e mudança do clima.
O Congresso norte-americano, por sua vez, é refém do embate entre duas forças políticas antagônicas: a coalizão exportadora, formada por empresas multinacionais que percebem a conclusão da negociação como oportunidade de abertura de novos mercados, e a aliança protecionista "ad hoc", formada por sindicatos, lobby agrícola, indústrias tradicionais e uma percepção pública difusa, que vê no comércio a causa da destruição de postos de trabalho no país.
Como resultado, os EUA não só frearam a conclusão da Rodada Doha como parecem caminhar, ainda que a pequenos passos, para certa hostilidade em relação à OMC.
Não é incomum que se ouça, em Washington, defensores de "reformas" da organização, como o abandono do processo decisório por consenso, a redução dos poderes do órgão de solução de controvérsias e a violação do princípio basilar da "nação mais favorecida" por meio da negociação de acordos plurilaterais.
Neste ano em que, pela terceira vez, abre-se a janela de oportunidade para que o Congresso norte - mericano vote a saída do país da OMC, só resta esperar que, assim como o Grinch entendeu que o fim da celebração era a extinção do próprio espírito que orientava a vida social ao seu redor, além da sua própria, os EUA percebam que a não conclusão da Rodada Doha é mais do que uma oportunidade perdida -é uma ameaça ao próprio sistema de regras construído há mais de 60 anos sob sua inspiração.
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Fonte: Folha de São Paulo - 28/01/10
Autor: Diego Zancan Bonomo

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