26 fevereiro, 2010

Transposição do Rio São Francisco

Transposição do Rio São Francisco

Objetivo - Para abastecer rios menores e açudes no semiárido nordestino, a transposição do Rio São Francisco vai desviar uma pequena parcela do volume do rio por meio de dutos e canais. Os dois eixos da obra são: Eixo Norte (que levará água da cidade pernambucana de Cabrobó para o sertão do estado, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte) e o Eixo Leste (colherá água em Petrolândia, em Pernambuco, para irrigar outros pontos no mesmo estado e na Paraíba).

Polêmicas - A transposição provoca debates: de um lado, os estados beneficiados pela obra buscam garantir água para milhares de pessoas no sertão e sustentar a agricultura irrigada; de outro, os estados banhados pelo curso natural do rio temem sofrer com a escassez em razão do desvio. Ambientalistas afirmam que a transposição pode aumentar os danos ambientais ao longo do Rio São Francisco, já bastante deteriorado.

Planejamento - A construção dos canais foi paralisada por ações judiciais e só foi retomada com a liberação na Justiça. O governo pretende concluir a obra em 2017.

Fonte: Atualidades Vestibular - 2010

Lixo eletrônico: uma montanha de problemas

Lixo eletrônico: uma montanha de problemas


As montanhas de perigoso lixo eletrônico crescem cerca de 40 milhões de toneladas ao ano

No Brasil, China, Índia e África do Sul, o crescimento desses resíduos ficará entre 200% e 500% na próxima década, afirma um novo estudo. Esse aumento inclui apenas os restos de televisores, computadores e telefones celulares de uso interno, e não as toneladas de lixo eletrônico exportadas para esses países, a maioria de forma ilegal. As vendas de produtos eletrônicos no varejo explodiram nas economias emergentes, mas não há capacidade para recolher os restos, reciclar conteúdos tóxicos e convertê-los em materiais valiosos, afirma o estudo “Recycling - from E-waste to Resources” (Reciclando - de Lixo Eletrônico a Recursos), divulgado em Bali, na Indonésia.
A publicação coincide com uma reunião do Convênio da Basiléia sobre Controle de Movimentos Transfronteiriços dos Dejetos Perigosos e sua Eliminação. Os restos de telefones celulares serão, em 2020, sete vezes superiores aos de 2007 na China, e 18 vezes maior na Índia. A China já produz 2,3 milhões de toneladas, atrás dos Estados Unidos, com cerca de três milhões de toneladas. E apesar de proibir a importação deste lixo, a China continua sendo o principal destino destes resíduos procedentes dos países ricos.
“Este informe mostra a urgente necessidade de estabelecer processos obrigatórios, formais e ambiciosos para recolher e disponibilizar este lixo em instalações amplas e eficientes na China”, disse em Bali o diretor-executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), Achim Steiner. “Não é só a China que enfrenta este desafio. Brasil, Índia, México e outras nações também vivem riscos ambientais e sanitários se a reciclagem destes resíduos tóxicos ficar em mãos do setor informal”, acrescentou.
Não se trata da necessidade de desmontar manualmente os aparelhos eletrônicos, que de fato é uma tarefa essencial em muitos casos, diz Ruediger Kuehr, da Universidade das Nações Unidas e secretário-executivo da iniciativa Solving the E-waste Problem (StEP – Resolvendo o Problema do Lixo Eletrônico), um consórcio de organizações não governamentais, indústrias e governos. Mas o desmonte manual deve ser feito de maneira apropriada, em condições ambientais corretas, disse Kueher à IPS de seu escritório em Hamburgo (Alemanha). “A reciclagem eletrônica é muito complicada. Um telefone pode ter entre 40 e 60 elementos diferentes”, ressaltou.
O ouro é um desses elementos valiosos, e a reciclagem informal, praticada na China e na Índia, consegue extrair apenas 20% desse metal. No total, há centenas de milhões de dólares nos celulares que nunca são recuperados, disse Kuehr. As somas aumentam rapidamente para milhares de milhões de dólares de valiosos metais não recuperados quando são considerados os componentes das baterias.
Explorar e refinar novos metais, prata, ouro, paládio, cobre e outros, tem grande impacto ambiental, como uma grande quantidade de gases-estufa lançados na atmosfera, diz o informe. E alguns materiais estão se tornando escassos e, por isso, mais caros. O desenvolvimento de um sistema nacional sólido de reciclagem é complexo, e somente na base de financiamento e transferência de tecnologia do mundo rico não funcionará, segundo o documento. A falta de uma ampla rede de coleta destes resíduos, somada à competição do setor informal de baixo custo, impede o desenvolvimento de modernas unidades para esta atividade.
O informe, realizado em coautoria pela suíça Empa, Umicore e Universidade das Nações Unidas, todos membros do StEP, propõe facilitar a exportação de porções de produtos, como baterias ou paineis de circuitos de países pequenos para as nações da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), processadoras finais certificadas. As unidades de recuperação de materiais na Europa e América do Norte, que podem extrair quase todos os metais valiosos, são muito caras e precisam processar uma grande quantidade de lixo eletrônico para serem rentáveis.
Aí está a oportunidade de dar a volta na cadeia de fornecimento, com as nações em desenvolvimento desmontando seus produtos eletrônicos e enviando os materiais para a reciclagem final e recuperação no mundo rico, segundo Kuehr. “Recuperar elementos raros e valiosos, como o irídio, representa um difícil processo técnico. O mundo em desenvolvimento nunca terá recursos suficientes para construir suas próprias fábricas. É necessária uma solução global”, afirmou. Porém, há muitos impedimentos para semelhante solução, inclusive o fato de alguns setores, de vários países, estarem fazendo muito dinheiro graças à atual ineficiência, acrescentou Kuehr.
A classificação adequada do material (um computador que não funciona deve ser descartado ou pode se consertado facilmente e continuar em uso?) e um acordo internacional para estabelecer permissões são outros grandes obstáculos. Também existe a desconfiança sobre as declarações dos recicladores, a falta de certificação e de certeza de que os países que desmontam os produtos serão beneficiados ao enviá-los às nações da OCDE para sua recuperação final.
“Precisamos de um sistema global, mas não temos uma solução final sobre como chegar a isso”. Definitivamente, a sociedade mundial precisa avançar para a desmaterialização, onde o reuso domine completamente a reciclagem, que é intensiva em energia e recursos, mesmo quando não seja contaminante, segundo Kuher. As pessoas que compram computadores ou telefones celulares querem, na realidade, serviços de informática e comunicações, não produtos físicos. O caminho para o futuro é que as empresas tenham os produtos que ofereçam esses serviços e os atualizem uma e outra vez, fechando o círculo. “Isto tem mais sentido em muitos aspectos”, concluiu Kuehr.

Fonte: mwglobal.org - 24/02/10
Autor: Stephen Leahy

25 fevereiro, 2010

As incertezas da descarbonização

As incertezas da descarbonização

Há três razões para que não se repita no México o desastre de Copenhague. Primeiro, porque em breve serão conhecidas as potencialidades e limitações da reforma energética que terá sido aprovada pelo Congresso dos EUA. Segundo, porque isso permitirá que o governo Obama se empenhe em formular com a Europa e com o Japão uma oferta conjunta que leve as maiores nações emergentes a desacelerar a disparada de suas emissões. E terceiro, porque sobre essa nova base ficará mais simples neutralizar resistências que provavelmente ainda persistirão.
Todavia, por melhor que possa vir a ser o resultado da conferência do México, ele deixará os ambientalistas tão ou mais frustrados do que ficaram com o de Copenhague. Basicamente porque a Convenção do Clima (UNFCCC) e o Protocolo de Kyoto não geraram um regime global voltado para o efetivo controle das mudanças provocadas pelas emissões de gases de efeito estufa. Se tal regime existisse, além de ser estritamente orientado pelas evidências científicas fornecidas pelo painel criado pela ONU para esse fim (IPCC), ele também teria que estar enquadrado institucionalmente por seu programa ambiental: o Pnuma (UNEP).
Em vez disso, desde que a questão climática começou a ser considerada pela comunidade internacional, a arena das negociações foi a Assembleia Geral da ONU. Depois, a Convenção que saiu da Conferência do Rio, em 1992, subordinou o aquecimento global ao contexto muito mais amplo e complexo daquilo que começava a ser chamado de "desenvolvimento sustentável". Ou seja, longe do âmbito predominantemente ambiental em que havia sido organizada a gestão internacional do problema da camada de ozônio, conforme o regime criado pela Convenção de Viena e pelo Protocolo de Montreal. Uma orientação que foi perversamente radicalizada quando o Protocolo de Kyoto glorificou a dicotomia entre países "desenvolvidos" e "em desenvolvimento", em vez de preferir, por exemplo, a tripla abordagem do PNUD, com países de alto, médio e baixo desenvolvimento.
Por isso, nada poderia ser mais ilusório do que supor que em dezembro de 2010 poderia surgir no México algum documento orientado por altruística consciência ambiental decorrente das evidências científicas consolidadas pelo IPCC. Se houver acordo, ele será essencialmente determinado pelas possibilidades de conciliação dos interesses econômicos nacionais das grandes potências tradicionais e emergentes. Interesses que resultam de diversas combinações entre suas perspectivas de segurança energética e de novos negócios baseados em soluções de baixo carbono. Isto é, em inovações voltadas à redução das nocivas incertezas causadas pelo uso de energias fósseis e à sua paulatina substituição por energias renováveis.
Tudo seria muito mais simples, portanto, se já fossem conhecidas as tecnologias que poderão promover a transição ao baixo carbono. Mas, por enquanto, esse é um túnel que continua bem escuro. O que parece certo é que as energias renováveis terão significativas reduções de custo, mas não o suficiente para que alguma se torne competitiva antes de 2020. O que leva a crer que as duas principais tendências da segunda década do século sejam: o segundo renascimento da energia nuclear e a CCS (sigla em inglês para captura e armazenamento do carbono emitido na extração e nos usos de energias fósseis).
É claro que os governos têm quatro bons motivos para subsidiar a geração e utilização das fontes renováveis de mais futuro: biomassas, eólicas, geotérmicas, marinhas e solares. Antes de tudo a constatação de que elas dependerão desse tipo de apoio enquanto impostos ou mercados regulados de permissões ("cap-and-trade") não tornarem as emissões de carbono suficientemente gravosas. O segundo é o argumento mais tradicional, que concerne todas as inovações ainda imaturas, mas com potencial de se tornarem competitivas com aumento de escala. O terceiro está na necessidade de diversificação das fontes primárias por razões de segurança energética. Finalmente, em razão da própria natureza finita da oferta barata de energias fósseis, estimadas hoje em 40 anos para o petróleo, 60 para o gás e 130 para o carvão.
O problema é que esses quatro argumentos não terão muita força no curto prazo da próxima década. Por isso, as principais incógnitas que precederão a conferência do México estarão em grande parte vinculadas às possibilidades de acesso da China e da Índia às inovações tecnológicas nos âmbitos da energia nuclear e de CCS, principalmente para o imenso uso de carvão. O que será bem mais complicado do que garantir a outros grandes emissores - como Brasil e Indonésia - algum tipo de ajuda para que minimizem seus desmatamentos e queimadas até 2020.
Por mais diferenças que existam entre China e Índia, há idêntica recusa de arcar com os altíssimos custos dessas iniciativas. Se os países mais desenvolvidos não encontrarem maneiras de viabilizar os investimentos exigidos nesses dois gigantes pelo nuclear e pela CCS, eles terão argumentos de sobra para preferirem o risco de conflitos provocados pela provável proliferação de novas barreiras comerciais. Será possível demonstrar à OMC que boa parte das reduções das emissões de carbono dos países mais ricos foi obtida via consumo de produtos importados de países emergentes. A China é o país que mais tem enfatizado a necessidade de um balanço das emissões embutidas no comércio internacional, pois 70% das suas podem ser atribuídas a exportações, principalmente para os EUA e para o Japão.
Diante de tantas dificuldades, alguns dos melhores analistas começam a considerar mais provável a hipótese de a falência da Convenção do Clima seguida de uso unilateral de alguma geoengenharia. Por exemplo, a injeção de partículas na estratosfera (10 a 50 km de altitude) para aumentar a refletividade do planeta ("albedo"). Podem estar exagerando, mas as incertezas envolvidas nesse tipo de ameaça talvez ajudem o G-20 a finalmente assumir seu papel de principal instância de governança global.

Autor : José Eli da Veiga.

Entrevista Ivo de Boer

Entrevista Ivo de Boer
Vai levar mais dois anos para finalizar esse negócio

Chefe da ONU para o clima descarta conclusão de acordo contra emissões no México

O SECRETÁRIO-EXECUTIVO da UNFCCC (Convenção do Clima das Nações Unidas), o holandês Yvo de Boer, disse, em entrevista à Folha, que não acredita que um acordo internacional com força de lei contra a mudança climática será finalizado no fim deste ano no México.

"Eu acho que isso vai levar mais dois anos", afirmou em uma das primeiras entrevistas após anunciar, na última quinta-feira, que deixará o cargo em junho. Segundo De Boer, que admitiu sofrer pressões de governos durante seus primeiros anos no cargo, a cúpula do clima de Copenhague, em dezembro, foi "um retrocesso de um ano".

Embora defenda o resultado de Copenhague, por ter trazido a mudança climática para o topo da agenda mundial, De Boer afirmou que o encontro não produziu o resultado esperado - e que essa é uma das razões da sua renúncia.
O principal funcionário da ONU para o clima disse também que seu estilo franco lhe rendeu problemas "em duas ou três ocasiões", quando governos ligaram para o secretário-geral da organização para se queixar dele. E que é chegada a hora de um diplomata de um país em desenvolvimento assumir a Convenção do Clima. Um nome citado por De Boer foi o de Everton Vargas, embaixador do Brasil em Berlim.

FOLHA - O sr. já viu um momento tão difícil no processo de negociação do clima como este agora? Já era difícil quando o público acreditava no assunto. Vai ficar impossível?

YVO DE BOER - Primeiramente, eu acho que não há um público só, mas três. Um de segurança energética, um de crise energética e um de mudança climática. E acho que a razão pela qual nós vimos um impulso tão grande no último par de anos é que essas três agendas acabaram se juntando, e as coisas continuarão assim. Em segundo lugar, embora Copenhague não tenha produzido um resultado formal, mesmo assim juntou 120 chefes de Estado e de governo, algo que aconteceu poucas vezes na história. E isso eu acho que é um sinal de que esse assunto finalmente chegou onde deveria estar, que é no topo da agenda dos líderes mundiais.

FOLHA - Mas o Acordo de Copenhague não é um beco sem saída para as negociações?

DE BOER - Acho que não. Todos os países com quem conversei desde Copenhague - EUA, Europa, Brasil, China, Índia, México, África do Sul - manifestaram uma forte intenção de usar o conteúdo do acordo para dar novo sentido às negociações. Nesse sentido, não acho que ele seja letra morta. Mas acho que é importante não inflar o estado do acordo. O fato é que ele não foi formalmente adotado.

FOLHA - Qual texto será negociado no México? Serão os textos do KP (Protocolo de Kyoto) e do LCA (ações de longo prazo) ou será o próprio Acordo de Copenhague?

DE BOER - Continuaremos a negociar com base nos textos que foram encaminhados pelo KP e pelo LCA. Muitas decisões estavam próximas de ser finalizadas em Copenhague. Tecnologia, capacitação e Redd [florestas] estavam quase finalizadas, e há uma segunda categoria de questões que poderiam ser resolvidas usando o conteúdo do Acordo de Copenhague, e há uma terceira categoria de questões em torno das quais as negociações não avançaram muito e precisariam de mais tempo ao longo do ano que vem.

FOLHA- O sr. poderia ter continuado à frente da convenção. Por que não assinou no ano passado uma extensão de três anos do mandato?

DE BOER - Foi uma extensão de um ano porque hoje o secretário-geral da ONU pede aos indicados seniores que só fiquem um ano. O contrato poderia ser estendido em setembro, se eu quisesse, mas eu acho que isso [a negociação] vai provavelmente levar mais dois anos. Precisamos fazer em Cancún o que não conseguimos em Copenhague: criar uma arquitetura para implementação sob a convenção e acordar um segundo período de compromisso para o Protocolo de Kyoto. Então, no encontro subsequente, daqui a dois anos, na África do Sul, será possível concluir um novo instrumento legal.

FOLHA- Só para esclarecer: então o sr. não acha que teremos um acordo legalmente vinculante na COP-16?

DE BOER - Não, não acho. Veja, minha ambição foi que Copenhague adotasse a arquitetura necessária para uma resposta de longo prazo à mudança climática e que um ano mais tarde, no México, ou talvez antes, isso fosse ser tornado um instrumento legalmente vinculante. Hoje eu acho que o México terá de fazer o que eu esperava que Copenhague fizesse. Então, nesse sentido, acho que foi um retrocesso de um ano.

FOLHA- Então Copenhague foi perda de tempo?

DE BOER - Não foi uma perda de tempo porque tivemos sob o LCA uma decisão guarda-chuva e novos rascunhos de decisões de implementação, houve acordo ou quase em muitas áreas, o Acordo de Copenhague faz referência aos 2°C de [aumento máximo de] temperatura, incluiu US$ 100 bilhões para financiamento e tem vários elementos que podemos usar para acelerar a negociação.

FOLHA- Quão importante para a sua renúncia foi o fiasco, se me permite a palavra, de Copenhague?

DE BOER - O emprego para o qual estou indo não é algo que se arranje em seis semanas. Eu já estava trabalhando nisso antes de Copenhague, assumindo que haveria um resultado mais positivo. E, quando este não veio, pensei se ainda deveria deixar o secretariado, e meu sentimento é que, por causa do valor do Acordo de Copenhague, porque vai levar mais dois anos para finalizar esse negócio e por causa do desgaste que esse trabalho envolve, decidi me ater ao plano original e sair.

FOLHA- O sr. tem um estilo extremamente direto de dizer as coisas para um diplomata. Isso lhe rendeu pressões de governos enquanto estava no cargo? Foi parte desse desgaste ao qual o sr. se referiu?

DE BOER - Sim, houve governos nos últimos três anos e meio que ficaram infelizes com coisas que eu disse ou fiz, e houve duas ou três ocasiões em que governos ligaram para o secretário-geral da ONU para dizer que estavam insatisfeitos comigo, mas eu sempre contei com o apoio total do secretário. Francamente, acho que é importante dizer as coisas como elas são e, sem exposição pública e sem lembrar as pessoas de suas responsabilidades, acho que esse processo teria caminhado de forma muito mais lenta.

FOLHA- O sr. pode falar mais dessas duas ou três ocasiões?

DE BOER - Não, isso foi há muito tempo, nos meus dois primeiros anos. São águas passadas.

FOLHA- Alguma discussão sobre quem irá substituí-lo?

DE BOER - Eu sou europeu, minha antecessora era europeia, o antecessor da minha antecessora é europeu, então talvez seja hora de algo novo. É claro que isso é uma decisão do secretário-geral, mas eu acho que provavelmente seria bom ter neste posto alguém de um país em desenvolvimento, que entende as preocupações dos países em desenvolvimento.

FOLHA- Tem alguém em mente?

DE BOER - Não, e isso não é da minha conta.

FOLHA- O embaixador Luiz Figueiredo se qualificaria?

DE BOER - Certamente, e muitas outras pessoas, inclusive meu velho amigo Everton Vargas.

FOLHA- O que falhou em Copenhague e de quem é a culpa?

DE BOER - Aconteceu que estávamos trabalhando rumo à adoção de uma série de decisões e então, quando os chefes de Estado e governo começaram a chegar, a atenção se desviou para a adoção de uma declaração política, e aquela declaração política foi finalizada muito tarde e por um grupo muito pequeno de países. Não houve oportunidade de convencer os representantes de todos os países de que ela deveria ser o resultado de Copenhague. Àquela altura, a conferência havia durado 24 horas mais do que deveria, as pessoas estavam cansadas, a tensão estava elevada e, nesse sentido, foi bom que o acordo não tenha sido empurrado goela abaixo.

FOLHA- O sr. esperava que as coisas fossem tomar aquele rumo?

DE BOER - Não, porque uma declaração política não era o que a maioria dos países desejava. O que eu esperava era uma série de decisões que produzissem um arcabouço forte para uma resposta de longo prazo à mudança climática e um acordo para um segundo período de compromisso do Protocolo de Kyoto, e nas horas finais de Copenhague as coisas tomaram um rumo muito diferente.

FOLHA- Qual é o futuro desse processo? Acabaremos com acordos bilaterais entre grandes emissores e a convenção ficará com a adaptação?

DE BOER - Acho que não. Acordos bilaterais são importantes e podem ajudar a avançar o processo. Mas nos últimos 20 anos se construiu uma imensa arquitetura em torno da UNFCCC. Além disso, mesmo que haja acordos sobre mitigação entre um número limitado de países, você ainda assim precisará de algum tipo de metodologia para reportar essas ações, verificá-las e premiá-las usando o financiamento acordado em Copenhague. Para que qualquer pacote tenha credibilidade, ele precisa ser aceito pela comunidade mais ampla.

FOLHA- As metas do Acordo de Copenhague nos dariam um aquecimento de pelo menos 3,5ºC. Não deveríamos reconhecer que não atingiremos a meta de 2ºC?

DE BOER- Eu acho que os 2ºC ainda podem ser alcançados. Acho que estamos ficando sem tempo e também acredito que não podemos esperar mais dois anos para finalizar as coisas. Mas, honestamente, não temos muita escolha. Precisamos reconhecer que Copenhague não entregou o que muitos países esperavam que fosse entregar.

FOLHA- A crise no IPCC torna as coisas mais difíceis do ponto de vista do apoio público?

DE BOER - Sim. Os erros cometidos pelo IPCC deram aos céticos mais uma oportunidade e fizeram algumas pessoas questionarem se a mudança climática é realmente algo com o que se preocupar. Mas acho que os governos em geral reconhecem que foram dois erros em um relatório de 3.000 páginas, erros relacionados à escala dos potenciais impactos da mudança climática, não à conclusão científica de que as concentrações de gases-estufa na atmosfera se relacionam com o aumento de temperatura, de que ela é induzida por seres humanos e está nos levando além das fronteiras das mudanças naturais que vimos no passado.

FOLHA- E o que o sr. acha que a comunidade climática deveria fazer para recuperar a credibilidade?

DE BOER - O IPCC tem procedimentos internos muito sólidos, mas claramente esses procedimentos não foram aplicados adequadamente. Está na hora de o IPCC botar a casa em ordem. Um dos problemas é que o IPCC tem um secretariado minúsculo. A maioria do trabalho é feita nos três grupos de trabalho do IPCC por cientistas que trabalham voluntariamente. Com uma questão tão importante quanto essa, você precisa ter um secretariado forte e mecanismos de controle fortes.

FOLHA- Ele deve ser tirado de supervisão governamental?

DE BOER - Acho que a supervisão governamental não é o problema, o problema é que o processo de revisão não foi feito de maneira suficientemente séria. O IPCC é um conjunto de 2.500 cientistas que olham para toda a literatura existente e, com base nisso, tentam chegar a uma avaliação equilibrada. Jogar tudo isso fora e tentar replicar em outro lugar seria a medida mais ineficiente que posso imaginar.

Fonte: Folha de São Paulo - 24/02/10

Brasil lidera avanço de cultivo transgênico

Brasil lidera avanço de cultivo transgênico

Plantio de sementes modificadas cresce 35% em 2009 e país se torna 2º maior produtor global, passando a Argentina
Para especialista, cultivo de transgênicos na Argentina chegou ao seu limite; nos EUA, maior produtor global, aumento foi de 2% em 2009

Com a autorização governamental para o plantio de milho transgênico, o Brasil foi o país em que mais cresceu a área cultivada de sementes modificadas, fazendo com que ultrapassasse pela primeira vez a Argentina e se tornasse o segundo maior produtor desse tipo de semente, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.
No ano passado, os produtores brasileiros aumentaram a área de cultivo de transgênicos em 35,4%, acrescentando 5,6 milhões de hectares a um território que agora soma 21,4 milhões de hectares. O avanço do cultivo no Brasil representou mais da metade do crescimento mundial em 2009, que foi de 9 milhões de hectares, ou 7% mais que no ano anterior, segundo a ISAAA (Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações em Agrobiotecnologia, na sigla em inglês).
Para ter uma ideia do avanço brasileiro, no levantamento divulgado em 2004 (o primeiro em que o país aparece), a estimativa era que os produtores tinham plantado 3 milhões de hectares de soja transgênica, ou 15% do total da área cultivada com a leguminosa. Em 2009, a cultura transgênica alcançava 71% da área cultivada apenas com soja, representando 21,4 milhões de hectares.
A maior parte do crescimento brasileiro se deve ao avanço da cultura de milho transgênico. Em 2009, o país plantou 5 milhões de hectares da variedade resistente a insetos, um aumento de cerca de 400% em relação a 2008, quando o Conselho Nacional de Biossegurança autorizou o plantio e a comercialização de duas variedades de milho transgênico.
A expansão do milho no país (que inclui as safras de verão e inverno) foi a maior registrada no mundo no ano passado entre as sementes transgênicas.
Para Clive James, presidente da ISAAA (que é uma ONG de fomento à divulgação de informações do setor de biotecnologia), ainda há espaço para o aumento do cultivo no país de sementes modificadas de soja e milho, além do algodão.
"Os países em desenvolvimento continuaram a comandar uma participação crescente nos plantios mundiais, com o Brasil exibindo claramente o seu potencial para se tornar o futuro motor propulsor de crescimento na América Latina", disse James na apresentação do relatório ontem.
O cenário brasileiro é, portanto, diferente do argentino, de quem o país tomou, por 100 mil hectares, o segundo lugar em área cultivada de transgênicos. De acordo com Alda Lerayer, diretora-executiva do Conselho de Informações sobre Biotecnologia, a produção no país vizinho chegou a um "platô". "A área já chegou ao seu limite", afirmou. A Argentina acrescentou 300 mil hectares em relação a 2008.
Lerayer disse que 100% da soja plantada na Argentina é geneticamente modificada, enquanto o milho já alcança 85%, e o algodão também tem um índice "bem alto".
Nos EUA, que são o líder global de cultivo de transgênicos, a área plantada com esse tipo de variedade cresceu cerca de 2% em 2009.


Fonte: Folha de São Paulo - 24/02/10

23 fevereiro, 2010

A OEA autônoma conquistou seu espaço

A OEA autônoma conquistou seu espaço

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A OEA plural está emergindo como referência política. Assim, soa estranha a concepção dos que querem uma instituição "alinhada"
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Nos últimos dias temos visto algumas opiniões críticas serem expressas com relação à Organização dos Estados Americanos, personalizadas na figura de seu secretário-geral, José Miguel Insulza.
O objetivo das críticas é, sem dúvida, bloquear a possibilidade de Insulza ser reeleito para seu cargo.
O que lemos - relatórios apresentados ao Senado dos EUA, informes de opinião, entrevistas - revela apenas a ponta do iceberg. Mais importante foi o que ficou invisível: as pressões que certos setores da política norte-americana e seus aliados mais tradicionais exercem, dentro e fora de seu país, sobre compatriotas e estrangeiros visando evitar a reeleição.
Os argumentos usados na crítica são fracos e pouco coerentes com os objetivos que se pretendem defender.
Na verdade, o ataque a Insulza não expressa uma polêmica sobre a melhor forma de defender a democracia - antes, é uma forma de luta para ocupar posições de poder.
Um primeiro argumento procura demonstrar que o secretário-geral da OEA não defende a democracia com eficácia e que seu viés ideológico - socialista - o leva a perdoar os erros dos amigos e exagerar os dos adversários.
As lições de democracia são francamente irritantes para os que sofreram ditaduras que mataram e torturaram, para os que foram perseguidos e tiveram que passar boa parte de suas vidas no exílio, para os que fizeram política lutando contra as ditaduras, para os que não herdaram a democracia, mas lutaram para conquistá-la.
Mais ainda quando essas acusações são feitas por pessoas que não manifestaram receios semelhantes em cultivar boas relações com os regimes autoritários do mundo.
Assim como os críticos que acusam Insulza não sabem defender a democracia, eles esquecem que ele foi perseguido pela ditadura por 17 anos, que foi gestor dos consensos no Chile e um dos principais arquitetos da transição e da complexa busca de equilíbrios entre direitas e esquerdas.
Há pouco mais de dois anos, Insulza apresentou para o Conselho Permanente da OEA uma agenda para a discussão da Carta Democrática. Nela se insinuava a ideia de que as ameaças à democracia são mais amplas do que as que existiam em décadas passadas.
Antes, o risco era a destituição dos presidentes. Hoje, podem ser o cesarismo, a pobreza, um Poder Executivo que avança sobre os outros Poderes ou sobre a própria sociedade. A sugestão de debater a questão não foi levada adiante. Apesar disso, alguns acusam o secretário-geral de não se preocupar com o desempenho dos governos democraticamente eleitos.
A impressão que se tem é que o problema é outro. Hoje, a OEA existe politicamente na América Latina e é vista como ator político. Até agora, para muitos países, a organização era a extensão da política externa de um de seus Estados-membros e, assim, sua voz não era levada em conta.
Nesse contexto, soa estranha a concepção daqueles que -em nome da promoção da democracia- querem uma OEA absolutamente alinhada, mesmo que o preço para isso seja a irrelevância da instituição. É difícil entender a utilidade de controlar uma voz que não é ouvida. A não ser que o objetivo real seja evitar que uma voz plural e crescentemente independente ocupe um espaço político na região.
A OEA plural, que recebe críticas da direita e da esquerda (alguns esquecem os epítetos lançados contra Insulza por personagens da região que, segundo os relatórios críticos, seriam seus "protegidos"), está emergindo como referência política. Ela vem levando adiante dezenas de missões eleitorais sem que um único país (nem governo nem oposição) tenha feito objeções ao trabalho da organização. Vem mediando processos de crises políticas, como na Nicarágua, salvando a paz e encaminhando o país em seu processo institucional. Vem atuando de modo preventivo, com discrição, em muitas situações delicadas, evitando a escalada de conflitos.
Essa é uma organização que trabalha sobre a base do consenso. A maior parte de suas decisões é tomada por acordos unânimes. É difícil adotar decisões operacionais com a concordância de todos, mas, quando se consegue, essas decisões têm força e legitimidade. Talvez seja o caso de discutir algumas questões novamente, mas em nenhum caso se pode ignorar essa prática essencial da OEA.
Insulza soube criar uma direção política em um sistema multilateral no qual a prática é conseguir, na medida do possível, a concordância de todos. Chama a atenção o fato de que os que têm anos de atividade política não tenham destacado a conquista que isso representa: tomar decisões sem a discordância de nenhum membro e que, além disso, sejam práticas.
A OEA autônoma, reflexo da pluralidade de seus Estados-membros, conquistou definitivamente um espaço na região. Hoje ela pode fazer mais pela democracia porque não obedece às ordens de ninguém, mas soube construir consensos no território imensamente difícil das diferenças e rivalidades políticas.

Fonte: Folha de São Paulo - 23/02/10
Autor: DANTE CAPUTO é ex-ministro das Relações Exteriores da República Argentina (1983 e 1989) e ex-secretário de Assuntos Políticos da OEA (2005 a 2009).

Laranja diplomático

Laranja diplomático

Há dois problemas planetários centrais na pauta do século 21. Nos dois casos, tudo começou muito mal. A questão ambiental regrediu pelo menos uma década com o fracasso da conferência de Copenhague e a desmoralização científica do chamado "Climagate". E o programa nuclear do Irã pode enterrar as poucas e ainda tímidas iniciativas por um desarmamento global.
O atual governo do Irã está diante de uma crise de legitimidade sem precedentes desde a revolução de 1979. As eleições de junho de 2009 apresentaram sérios indícios de fraude. E o país está diante de uma encruzilhada. A velha guarda do regime quer produzir -mesmo que à força- a velha unidade nacional de valores e de um modo de vida único e padronizado. E os frequentes protestos contra o governo não aceitam menos do que uma democratização do regime.
Além de reprimir como pode as manifestações pró-democracia, o governo do Irã está usando suas pretensões nucleares para tentar unificar artificialmente o país contra o inimigo externo. Para isso, empacota o urânio enriquecido como luta contra Israel e os Estados Unidos. É a famosa fraude baseada em fatos reais.
Se o Brasil continuar insistindo em se colocar como "mediador" nessa crise, só vai fazer papel de laranja. Vai contribuir com as forças mais reacionárias do Irã contra a democratização. E vai dar fôlego a um programa nuclear que pode produzir corrida armamentista e desequilíbrio bélico em escala mundial.
O Brasil está em um bom momento internacional. É dos poucos países relevantes que podem bater no peito e dizer que já saíram da crise. Dispõe de perspectivas muito boas para os próximos anos. E tem um presidente que é considerado um santo não só em vida como no exercício do mandato, o que é coisa raríssima.
Dentro dos limites de sua capacidade, a diplomacia brasileira deve aproveitar como puder esse bom momento, sem dúvida. Mas não em relação ao Irã, que já deu provas cabais de que não é um parceiro de negociação confiável. Basta lembrar que aplicou o golpe de dizer que o Brasil já tinha aceitado enriquecer o seu urânio. Isso não apenas era falso como também inviável, já que nem o próprio Brasil tem ainda autossuficiência nesse quesito.
É urgente unir todas as forças disponíveis pela eliminação de todo o arsenal nuclear existente, mesmo que seja em um plano de desarmamento de longo prazo. O Brasil não pode e não deve perder essa oportunidade de reafirmar uma política externa pacifista. E isso inclui, hoje, pressionar o Irã para que abra o seu programa nuclear à fiscalização internacional.

Fonte: Folha de São Paulo - 23/02/10
Autor: Marcos Nobre

Haiti, o terremoto e o martírio de uma nação

Haiti, o terremoto e o martírio de uma nação

Não bastassem três décadas de ditadura dos Duvalier, a decepção com o governo de Bertrand Aristide ou o posto de nação mais pobre da América, o Haiti comprova que a realidade pode ser ainda mais sinistra, como foi em 12 de janeiro. Um terremoto de 7 graus na escala Richter colocou no chão a capital Porto Príncipe. Estima-se que tenham morrido mais de 200 mil pessoas, entre elas uma brasileira ilustre, a médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança. Movidos pelos ideais da Revolução Francesa (1789), os escravos haitianos proclamaram a primeira república negra independente no mundo moderno em 1804. Liderados pelo ex-escravo Toussaint L'Overture, deram início ao movimento que culminou com a independência -aliás, só reconhecida por Paris em 1838, mediante pagamento de uma pesada indenização. Após a independência, o Haiti teve uma trajetória marcada por crises políticas. Por volta de 1915, alegando quebra de compromissos, os EUA ocuparam o país e, embora tenham se retirado oficialmente em 1934, jamais deixaram de interferir na nação caribenha. No século 20, com o aval dos EUA, assumiu o comando do Haiti o médico François Duvalier, o Papa Doc, eleito em 1957. Em 1964, ele se autoproclamou presidente vitalício, implantando uma ditadura. Sua base de apoio eram os "tontons macoutes", milícia armada que reprimia com violência qualquer oposição ao regime. Após sua morte, em 1971, assumiu seu filho, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, com apenas 19 anos. Denunciado por violação aos direitos humanos, foi deposto em 1986 e asilou-se em Paris. Com o fim da ditadura, renascem as esperanças agora depositadas no padre Jean-Bertrand Aristide, eleito presidente em 1990. Com um programa baseado na luta contra a corrupção, Aristide não resistiu e foi deposto em 1991, por um golpe. Com a intervenção dos EUA, foi reconduzido ao poder em 1993 e concluiu seu mandato. Novamente eleito em 2000, Aristide foi incapaz de contornar a crise e, agora pressionado pelos EUA, renunciou. Deixou o país em 2004 à beira de uma guerra civil. De pronto, a ONU decidiu enviar uma força internacional para restabelecer a ordem, a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti), sob o comando do Brasil. Com muito trabalho, o país vinha sendo reconstruído. Mas todo esse esforço ruiu com o terremoto que soterrou não só a incipiente estrutura do Estado haitiano mas o sonho de liberdade dos herdeiros de L'Overture.

Fonte: Folha de São Paulo - 23/02/10
Autor: ROBERTO CANDELORI

Indígenas na pista

Indígenas na pista
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Os órgãos do governo diferenciam os indígenas dos demais residentes ou "pedestres" da região
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Esse é um dos avisos ao motorista que trafega pela RS-406, uma das rodovias que ligam o norte do Rio Grande do Sul a Santa Catarina.
A placa, fotografada no município de Nonoai (RS), suscita algumas reflexões a respeito da questão indígena no Brasil e na América Latina.
Ao usar o termo "indígenas", e não "pedestres", percebe-se que os órgãos governamentais responsáveis pelo tráfego local diferenciam esse grupo social dos demais residentes ou "pedestres" da região.
E é nessa diferenciação que está a raiz da situação de exclusão social em que se encontram diversos povos indígenas latino-americanos.
Inicialmente perseguidos e escravizados, ainda que houvesse forte resistência por parte de diversas tribos, eles vivem atualmente em reservas, modelo adotado no Brasil desde a década de 1960, seguindo a política adotada nos Estados Unidos. Na maior parte da América Latina, porém, não foram criadas áreas específicas para os povos que viviam nessas terras antes da chegada dos colonizadores europeus.
Grande parte dos descendentes dos outrora poderosos impérios inca, maia e asteca se encontram em situação de extrema pobreza.
Entretanto, nota-se algo em comum na política indigenista brasileira e na dos demais países dessa região: a questão indígena está cada vez mais vinculada à questão agrária.
Coincidentemente ou não, Nonoai se encontra na mesma região do município de Sarandi (PR), um dos berços do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), fundado na década de 1980.
No Chile, a reforma agrária teve início na década de 1970, na região de Temuco, no sul, em decorrência das reivindicações e invasões de propriedades promovidas pelos camponeses indígenas mapuches.
Não há dúvida de que alguns dos métodos adotados pelos movimentos que lutam pela reforma agrária são discutíveis e mesmo inaceitáveis.
Por outro lado, é inquestionável que a concentração fundiária é uma triste realidade em todo o continente.
Para os povos indígenas brasileiros, resta a esperança de manter e desenvolver suas culturas nas áreas a eles destinadas por lei -ainda que grupos que defendem os interesses de proprietários de terras, como o MNP (Movimento Nacional de Produtores), considerem os índios verdadeiros latifundiários, já que cada um seria "dono" de 2.460 hectares e que, no total, essa população detém 12% do território nacional.
Trata-se, portanto, de um embate de grandes proporções e que ainda está por ser resolvido no Brasil e na maior parte dos países vizinhos.
Vez por outra, essa questão vem à tona. Alguns exemplos são os recentes casos dos conflitos ocorridos em Roraima, com a criação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, ou da revolta dos índios peruanos da região amazônica diante do interesse do governo em "regulamentar" a exploração dos recursos minerais naquela região, entre muitos outros.
Em outros períodos, paira nos meios de comunicação uma aparente tranquilidade sobre o tema, perturbada por uma placa de beira de estrada desse imenso e mal distribuído território brasileiro.

Fonte: Folha de São Paulo - 23/02/10
Autor: ARNO A. GOETTEMS

20 fevereiro, 2010

O poder das energias renováveis

O poder das energias renováveis

O PODER DO VENTO

O vento existente nos seis continentes do planeta é suficiente para suprir o consumo mundial de energia em mais de quatro vezes o nível atual de consumo. A energia eólica já é uma história de sucesso e gera eletricidade para milhões de pessoas, empregos para dezenas de milhares de seres humanos e bilhões de dólares de lucro.
- Na China, a capacidade de geração de energia através do vento dobrou em 2002.
- Desde o início dos anos 70, o governo dinamarquês apóia o desenvolvimento e a implementação de uma forte indústria de energia eólica, especialmente através de abatimentos em impostos e investimentos públicos. Na Dinamarca, existem mais pessoas trabalhando na indústria de energia eólica do que na pesca.
- Na Mongólia, geradores portáteis de energia eólica são bastante usados por povos nômades em lâmpadas, rádios e outros aparelhos elétricos.

O PODER DO SOL

A luz solar que ilumina a Terra a cada hora é suficiente para suprir as necessidades humanas por um ano inteiro. Há muitas maneiras de utilizar esta fonte de energia:
- Coletores solares térmicos, que podem aquecer a água e o ar para casas e instalações industriais; ou energia solar fotovoltaica (PV), que gera eletricidade diretamente a partir da luz do sol. Simples, confiável, segura, e silenciosa, é uma eletricidade livre de qualquer poluição.
- Países em desenvolvimento instalaram mais de um milhão de sistemas domésticos de energia solar.
- Existem aproximadamente 150 mil sistemas domésticos de energia solar no Quênia, mais de 100 mil na China, 60 mil na Indonésia e mais de 300 mil lanternas solares na Índia.

O PODER DA BIOMASSA

Plantações podem ser cultivadas especificamente para a produção de combustíveis e a compostagem de material vegetal também pode ser usada para produzir gás metano, que, por sua vez, pode ser utilizado como combustível. No entanto, cultivos geneticamente modificados não devem ser usados com essa finalidade, bem como não devem haver emissões tóxicas (provenientes, por exemplo, do uso de agrotóxicos) resultantes da queima desse tipo de combustível. Resíduos florestais e agrícolas também podem ser usados para produzir eletricidade e aquecer, sem causar o aumento dos níveis de CO2.

O PODER DAS PEQUENAS HIDROELÉTRICAS

Os projetos de usinas hidroelétricas de pequena escala usam o fluxo natural das águas dos rios para gerar eletricidade. Unidades hidroelétricas familiares contam com pequenas turbinas que usam o fluxo da água para gerar eletricidade para casas.
- Mais de 100 mil famílias no Vietnã usam pequenas turbinas de água para gerar eletricidade.
- Mais de 45 mil pequenos projetos de pequenas hidroelétricas estão sendo usados na China, gerando energia para mais de 50 milhões de pessoas.

As vantagens da energia renovável

As vantagens da energia renovável foram bem delimitadas pelo Brasil em sua proposta apresentada na Rio+10. Na proposta, foi explicado que as novas fontes renováveis de energia - como biomassa, pequenas hidroelétricas, eólica e energia solar, incluindo a fotovoltaica - oferecem inúmeras vantagens:
- Aumentam a diversidade da oferta de energia;
- Asseguram a sustentabilidade da geração de energia a longo prazo;
- Reduzem as emissões atmosféricas de poluentes;
- Criam novas oportunidades de empregos nas regiões rurais, oferecendo oportunidades para fabricação local de tecnologia de energia;
- Fortalecem a garantia de fornecimento porque, diferentemente do setor dependente de combustíveis fósseis, não requerem importação.
Além de solucionar grandes problemas ambientais, como o efeito estufa, as novas renováveis ajudam a combater a pobreza. Como a própria delegação brasileira em Joanesburgo afirmou, as fontes renováveis de energia:
- Podem aumentar o acesso à água potável proveniente de poços. Água limpa e alimentação cozida reduzem a fome (95% dos alimentos precisam ser cozidos antes de serem ingeridos);
- Reduzem o tempo que mulheres e crianças gastam nas atividades básicas de sobrevivência (buscando toras, coletando água, cozinhando). Energia em casa facilita o acesso à educação, aumenta a segurança e permite o uso de mídia e comunicação na escola;
- Diminuem o desmatamento.

Fonte: Greenpeace

Estados Unidos: o primeiro ano de Obama

Estados Unidos: o primeiro ano de Obama


Ao completar o primeiro ano de mandato, as comparações entre a gestão de Barack Obama e a de seus predecessores, especialmente os vinculados ao Partido Democrata, são inevitáveis.
Ainda que pouco mais de doze meses de desempenho sejam escassos para avaliar uma administração, eles fornecem, no entanto, indicativos suficientes para identificar-se o norte adotado por um presidente.
No presente caso, verifica-se que a decepção ainda não superou totalmente a esperança, voltada, na mensagem democrata, para uma larga mudança, ou, ao menos, a tentativa de efetivá-la de maneira inexorável – excetuem-se, sem sombra de dúvida, os esforços direcionados para a aprovação de uma reforma na área de saúde, tema em que se debruça o seu partido de modo baldado desde Jimmy Carter.
Se positiva a opinião, cotejam-no com Franklin Roosevelt, em termos de reestruturação social em tempos de crise, ou com John Kennedy, em dinamismo e jovialidade; se negativa, com Lyndon Johnson, em termos de condução inepta de uma confrontação, ou com Jimmy Carter, em uma administração interna incapaz.
Na política externa, embora a apresentação se mostre distinta da do seu simplório predecessor, a execução não se alterou. Houve contatos iniciais com Irã, China, Rússia e Israel com o objetivo de distensionar determinadas questões, porém não se conseguiu a obtenção, até o momento, de um encaminhamento satisfatório para todos os envolvidos.
Ao eleitor americano, a sua primeira preocupação refere-se à política econômica, tendo em vista a preservação de seu emprego que traz consigo, em muitos casos, benefícios indiretos, como plano de saúde ou fundo de aposentadoria privado, por exemplo.
Ao chegar à Casa Branca, duas responsabilidades de porte assomaram no horizonte democrata: a econômica, em razão da falência de uma boa parte do segmento imobiliário e financeiro no final do mandato de Bush, e a externa, em vista das duas campanhas na região médio-oriental e cercanias.
Na primeira, ao longo do processo eleitoral, Obama manifestou a sua discordância no tocante ao teor da lei Gramm-Leach-Bliley, de novembro de 1999, que havia permitido desregulamentar o setor financeiro, ao revogar parcialmente uma legislação decorrente do primeiro mandato do presidente Franklin Roosevelt.
Naquele tempo, a contenção da cupidez do setor financeiro e o estímulo a obras de infra-estrutura proporcionariam aos democratas a vitória na eleição parlamentar de 1934.
Nos anos 30, o objetivo da Lei Glass-Steagall havia sido o de reduzir a especulação financeira, uma das responsáveis pela derrocada econômica de 1929. A partir de 1980, quando da ascensão neoconservadora nos Estados Unidos - sacramentada na eleição presidencial do final daquele mesmo ano -, o seu conteúdo foi sendo progressivamente desarticulado.
Quase duas décadas depois, as fusões de porte entre grupos de investimentos e de bancos foram novamente facultadas, o que propiciou a moldura para a crise de 2008, amenizada graças à boa disposição da Casa Branca em arcar com parte considerável do prejuízo – mais de 500 bilhões de dólares –, a fim de restringir os efeitos adversos.
Curiosamente, ambas as alterações ocorreram durante presidências democratas, na parte final de suas gestões.
No momento de uma derrocada financeira de porte, como a de 2008, os grãos sacerdotes neoliberais normalmente interrompem a idolatria de seu bezerro de ouro - o mercado – e direcionam, de maneira momentânea, porém fervorosa, as suas preces e, por conseguinte, a sua esperança ao Estado.
De forma quase miraculosa, este os atende, sendo-lhes o seu guardião protetor, a despeito do menosprezo sacerdotal a ele empenhado na maior parte do tempo.
Ao assumir o posto presidencial, Obama alterou à primeira vista o seu posicionamento de questionamento, ao convidar para integrar a área econômica antigos colaboradores de Clinton que, na época, haviam sido favoráveis à Lei Gramm. Entre eles, destaque-se Lawrence Summers, titular da Fazenda entre 1999 e 2001.
Na segunda, durante a campanha, Obama demonstrou a sua insatisfação relativamente não só às duas guerras, disseminada ao correr do processo eleitoral, mas ao tratamento jurídico dispensado aos prisioneiros, excluídos de modo arbitrário das convenções de Genebra por uma interpretação capciosa da área jurídica governamental.
A elucidação heterodoxa do status dos cativos afegãos e mais tarde iraquianos possibilitou às forças armadas a aplicação cotidiana de técnicas de interrogatório outrora consideradas abusivas, como afogamentos ou privação de sono, por exemplo.
Transcorrido 1\4 de sua administração, não há mudança de curso na política externa. Diante do presente quadro, a oposição republicana aproveita a inação administrativa em vários segmentos e acusa o governo de tibieza ante os grandes problemas.
Evoca como contraposição à inatividade democrata o dinamismo da gestão Reagan, a qual em seu primeiro semestre conjugou ações em que se reduziram os gastos sociais e ampliaram-se os militares, não obstante desfrutar de maioria – estreita – no Senado apenas.
Deste modo, a importância do primeiro ano de mandato de um administrador presidencial decorre da convergência política maior entre o eleito e o eleitor no tocante à materialização das expectativas compartilhadas entre si durante a campanha eleitoral.
Logo depois, o cotidiano de um homem de Estado à frente do poder consome-lhe desproporcionalmente a energia, mesmo a criativa, em vista da amplitude de tarefas a que deve se dedicar, ainda que boa parte delas de características comezinhas, como, por exemplo, cerimônias protocolares.
À medida que o tempo se esvai, há no dirigente uma transição na sua vontade política que se desloca da determinação original de governar diferentemente para a acomodação, isto é, de manter-se na mesma rota administrativa, a despeito de ela não ser a mais adequada para a maior parte da população.
É em tal processo que a oposição demonstra a sua capacidade de revigorar-se, ao espezinhar a quietação administrativa da situação. Nesse sentido, os republicanos tentam apresentar à população um quadro de incompetência dos democratas; na eleição legislativa do presente ano, poder-se-á constatar em que medida a população enxergará de maneira positiva a imagem contornada pela oposição.

Fonte: Correio da Cidadania - 20/Fevereiro/2010
Autor: Virgilio Arraes

O planeta chega ao seu limite

O planeta chega ao seu limite


Até agora, três dos limiares planetários – a mudança climática, a perda da biodiversidade e o ciclo do nitrogênio – já foram excedidos, e mais quatro – o ciclo do fósforo, acidificação dos oceanos, uso da água doce e do solo – serão logo ultrapassados se as atividades humanas mantiverem o ritmo atual.
Um recente artigo da renomada revista Nature, assinado por 29 cientistas, busca quantificar o impacto da atividade humana sobre a Terra, identificando processos biofísicos e seus limiares que, se transgredidos, podem gerar mudanças ambientais inaceitáveis¹. Johan Rockström, da Universidade de Estocolmo, e os coautores propõem nove “limiares planetários”: mudança climática; perda da biodiversidade; interferência nos ciclos do nitrogênio e do fósforo; acidificação dos oceanos; uso global de água doce; mudança no uso do solo; destruição do ozônio estratosférico; emissão de aerossóis na atmosfera; e poluição química. Esses limiares definem um “espaço de operação seguro” para as pressões humanas sobre a biosfera. O respeito desse espaço permitiria a humanidade continuar a prosperar por vários séculos no futuro.

10 mil anos de estabilidade

O planeta experimentou uma excepcional estabilidade ambiental nos últimos 10 mil anos. Este período, o Holoceno da geologia, começou no final da última glaciação e é caracterizado por uma temperatura global amena e praticamente constante, além de pouca variação dos fluxos geobioquímicos e da disponibilidade de água doce. Porém, na história do Homo sapiens sapiens, a estabilidade ambiental é exceção e não regra. Nos cem mil anos anteriores ao Holoceno, a temperatura global flutuou irregularmente. Foi quando nossa espécie exibiu uma imensa mobilidade: saiu da África, chegou à Austrália, migrou à Europa e entrou na América. Porém, a agricultura só surgiu durante o Holoceno. Antes, o clima errático, com amplas variações, teria dificultado a fixação do homem na terra. No Holoceno, a regularidade das estações favoreceu a passagem do nomadismo ao sedentarismo e a agricultura se desenvolveu na maior parte do globo; surgiram as cidades e as civilizações complexas. Com base na evolução prevista da órbita da Terra em torno do Sol, o Holoceno poderia prolongar-se por mais 50 mil anos². Ironicamente, contudo, foi a estabilidade mesma dessa era que antecipou o seu fim ao favorecer o desenvolvimento da humanidade e de suas ações destrutivas.
Os sistemas ecológicos têm a capacidade de responder a perturbações (incêndios, vulcanismo, pragas, etc) retornando a um estado próximo do inicial. Esta propriedade, a “resiliência”, permite que o sistema se recupere dos choques sofridos. A resiliência da biosfera manteve fatores-chave biogeoquímicos e atmosféricos flutuando dentro de uma faixa estreita durante o Holoceno. Contudo, estresses extremos podem romper a resiliência de toda a biosfera, que então colapsa. É o que ocorreu nas cinco extinções em massa, com causas astronômicas, vulcânicas ou atmosféricas. A última delas, há 65 milhões de anos, viu o desaparecimento dos dinossauros.

A humanidade pressiona a biosfera

Desde a Revolução Industrial, a atividade humana tornou-se o principal motor da mudança ambiental planetária, e a estabilidade do Holoceno está sob ameaça. Entramos numa nova era, o Antropoceno³, termo cunhado em 2000 por Paul Crutzen, prêmio Nobel em química de 1995 por seu trabalho sobre a destruição da camada de ozônio. Nesse período, várias pressões relativas à presença do homem sobre a biosfera, como o emprego crescente dos combustíveis fósseis e formas industrializadas de agricultura, estão erodindo a resiliência do Sistema Terra.
O artigo publicado na revista Nature nos alerta: três dos limiares planetários – a mudança climática, a perda da biodiversidade e o ciclo do nitrogênio – já foram excedidos, e mais quatro – o ciclo do fósforo, acidificação dos oceanos, uso de água doce e do solo – serão logo ultrapassados se as atividades humanas mantiverem o ritmo atual. Dois outros – aerossóis e poluição química – ainda não foram quantificados.
Na contramão dessa movimentação, um limiar, o da concentração de ozônio estratosférico, foi revertido a valores próximos do dos pré-industriais. Esse feito resulta do Protocolo de Montreal, de 1987, que baniu o uso dos clorofluorcarbonetos (CFCs) e de outras substâncias degradantes da camada de ozônio. O caso do ozônio ilustra como uma ação política concertada pode salvaguardar os limiares planetários.
Entre os limiares transgredidos, o mais sério é o da perda da biodiversidade. O parâmetro associado é o da taxa de extinção, calculado em número de espécies extintas por milhão de espécies por ano. O valor desse limiar é bastante incerto, pois pouco se sabe da resiliência da biosfera frente a ondas de extinção. Mas é claro que a ameaça à biodiversidade é terrível, com uma taxa de extinção de espécies de cem a mil vezes superior à do nível pré-industrial. O começo do Antropoceno parece esboçar a sexta extinção em massa da história da Terra.
Outra ameaça ambiental normalmente ignorada, mas que é muito grave é a da perturbação do ciclo do nitrogênio. Estamos removendo nitrogênio molecular (N2) da atmosfera, principalmente para a produção de fertilizantes para a agricultura, numa taxa de cerca de 3,5 vezes a do limiar de reposição natural (121 milhões de toneladas por ano contra 35 milhões). O N2 neutro é convertido em compostos reativos, que poluem as massas de água doce e a zona costeira, além de se acumularem no solo e lançarem diversos gases na atmosfera, entre eles o óxido nitroso, um potente gás estufa.
O corpo humano é composto em 97% por elementos químicos procedentes da hidrosfera e da atmosfera, e por apenas 3% de elementos da litosfera. Essencialmente, todo carbono e nitrogênio do nosso corpo provêm da atmosfera. Mas a humanidade só passou a extrair N2 diretamente da atmosfera no começo do século XX, com a invenção do processo Haber-Bosch de síntese de amônia a partir do N2. Esse processo é a primeira etapa na produção de fertilizantes e de explosivos. Antes a remoção humana do N2 atmosférico era estritamente zero. A agricultura contava, no solo, com nutrientes nitrogenados pré-existentes ou precedentes da fixação do nitrogênio atmosférico principalmente por bactérias. Só havia cultivos orgânicos, conforme o sentido recente dessa expressão. Esses, aliás, apoiados numa visão de sustentabilidade baseada na teoria da resiliência, são um dos instrumentos para restaurar o ciclo do nitrogênio.
O ciclo do fósforo também é perturbado pelas ações humanas. O seu limiar ainda não foi transgredido, mas deverá ser em breve. Hoje, a mineração extrai cerca de 20 milhões de toneladas de fósforo por ano, mas a quantidade lançada nos oceanos é assustadora. Os números (em milhões de toneladas por ano): cerca de 1 (pré-industrial), 8,5-9,5 (atual), 11 (limiar). Exceder esse limite causaria a redução da concentração do oxigênio nos oceanos, isso é tão grave que provocaria a extinção em massa da vida marinha.
O fato de “apenas” três limiares terem sido transgredidos não significa uma boa notícia. Os limiares planetários estão fortemente acoplados; transgredir um deles perturba os demais. Assim, a acidificação dos oceanos coloca em risco a capacidade deles de absorver CO2, afetando o limiar da mudança climática.
Para evitar uma catástrofe, é necessária uma nova agenda de economia ecológica, levando-se em conta tanto os aportes do ambiente para o bem-estar humano como os limites biofísicos ao crescimento econômico. Hannh Arendt, em A condição humana, assinala os três eventos que moldam a Era Moderna: as grandes navegações, a reforma religiosa e a invenção do telescópio. O último evento, em conjunto com o primeiro, firmam o ponto de vista arquimediano: a humanidade vê a Terra desde uma posição extraterrestre e age sobre todo o globo. O Antropoceno conclui o “dá-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei a Terra” arquimediano. Cabe agora modular a direção, a intensidade e a cadência desse movimento.

1 Rockström, J., et AL. “A safe operating space for humanity”, Nature, 461, 472-475, 2009.
2 Berger, A., e Loutre, M.F. “An exceptionally long interglacial ahead?”, Science, 297, 1287-1288, 2002.
3 Crutzen, P.J. “Geology of mankind”. Nature, 415, 23, 2002.

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil - Dezembro 2009.
Autor: Amâncio Friaça.

16 fevereiro, 2010

Desenvolvimento - Outro conceito é possível

Desenvolvimento: Outro conceito é possível


Uma mudança no conceito de desenvolvimento daria aos países pobres a oportunidade de crescerem e superarem os desafios da mudança climática e das crises alimentar e financeira mundiais, afirmou a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
A questão crucial é evitar medidas de resposta para crises que perpetuem padrões de produção e de consumo insustentáveis do ponto de vista econômico, social e ambiental, alerta um estudo da Unctad.
O relatório “Comércio e Meio Ambiente 2009/2010” afirma que o crescimento e o comércio têm sido determinados pelos efeitos da economia de escala, baseada no preceito que vincula a redução do custo de produção ao aumento do número de unidades produzidas. A tarefa principal para as próximas décadas será modificar o conceito de desenvolvimento de maneira que o primordial seja levar em conta o efeito das mudanças estruturais e tecnológicas, disse Ulrich Hoffmann, chefe da seção de Comércio e Desenvolvimento Sustentável da Unctad.
O que falta não é uma mudança gradual, mas uma espécie de “esforço de tempos de guerra”, disse Hoffmann à IPS. Os governos terão que agir como se estivessem em condições de um conflito bélico, explicou. Deve ser algo completamente diferente do que vimos nos últimos 20 ou 30 anos, insistiu. O que se exige dos governos são políticas industriais ativas, o abandono dessa espécie de passividade neoliberal e o retorno a políticas industrialistas, acrescentou.
O desafio é colossal, admite o informe distribuído ontem. Entre 1980 e 2008, quase 30 anos, a intensidade do carbono exigido pelo crescimento diminuiu, de cerca de um quilo para cada dólar de produto interno bruto para 770 gramas, ou seja, em torno de 23%. Porém, para alcançar em 2050 as metas de redução de emissões de gases-estufa, causadores da mudança climática, a intensidade do carbono deverá baixar até seis gramas por dólar do PIB, isto é, cerca de 130 vezes abaixo do nível atual. Um desafio dessa magnitude exige mudanças drásticas no conceito de desenvolvimento, afirmou o especialista.
Os esforços de mitigação do aquecimento global devem ser vistos como parte de um processo de mudança estrutural e de inovação, combinado com justiça social. Falamos de um modelo de crescimento e desenvolvimento estrutural e qualitativamente diferente, explicou. O estudo da Unctad incursiona nas causas da crise que afeta os sistemas econômico e financeiro, o clima e o acesso aos alimentos. Uma das razões é o rápido aumento das desigualdades na renda, especialmente nos membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE), que agrupa países ricos, e algumas nações em desenvolvimento.
Nos Estados Unidos, no final de 2007, o salário real médio de trabalhadores homens em regime integral era inferior ao que recebiam no começo da década de 70. Na maior parte dos países da OCDE, nas duas últimas décadas, a maioria dos ganhos acabou na porção mais rica da população. Outra causa notável foi o aumento dos preços dos produtos básicos industriais, que em termos reais alcançaram níveis sem precedentes em meados de 2008. A alta incluiu os preços de minerais e metais, e também de combustíveis, mas não dos alimentos, disse a Unctad.
A terceira origem da crise foi o “cassino financeiro”. A falta de regulamentações internacionais fez com que, em muitos países ricos, apenas 10% dos benefícios obtidos pelas empresas dedicadas à produção fossem investidos em atividades do mesmo tipo. O resto do lucro acabou nos mercados financeiros, em busca de benefícios especulativos.
O estudo cita um dado do Banco de Pagamentos Internacionais, que coordena bancos centrais, que indica um total de US$ 600 trilhões para o capital especulativo investido no final de 2007. Essa quantia equivale a 10 ou 11 vezes o valor do PIB mundial, que em 2007 foi estimado entre US$ 55 trilhões e US$ 65 trilhões, disse a Unctad. Neste ponto, o estudo propõe que os países em desenvolvimento avancem no processo para economias verdes, mediante a criação de “polos de crescimento limpo”. Uma primeira alternativa seria melhorar a eficiência energética.
A Unctad afirma que, desta forma, seria possível cobrir dois terços dos objetivos de redução global de emissões de gases-estufa estabelecidos para 2030. Na área de eficiência energética, o setor da construção se destaca como muito promissor. A criação de edifícios verdes envolveria empresas pequenas e médias, usando materiais locais e estimulando o comércio Sul-Sul, além de favorecer o emprego local, disse Hoffmann.
Outro polo de crescimento limpo proposto pela Unctad é a promoção da agricultura sustentável, que, no caso particular da orgânica, tem uma eficiência energética entre 25% e 60% acima da convencional. A agricultura orgânica obtém melhores preços, ocupa mais força de trabalho e não usa agroquímicos. Este fator ganha importância ao se pensar que um continente como a África importa cerca de 90% dos fertilizantes e pesticidas que utiliza, destaca Hoffmann. Se levarmos a sério a agricultura, que é um dos setores vitais para a maioria dos países em desenvolvimento, e a combinarmos com as energias renováveis nas áreas rurais, isso se converte em uma passagem de primeira classe para o desenvolvimento, ressaltou.
Este especialista da Unctad disse que a reforma do sistema financeiro internacional é uma condição necessária para avançar nos planos de crescimento limpo nos países pobres. Também destacou a necessidade de desestimular a especulação financeira mediante diversas estratégias e incentivar os investimentos “verdes”. IPS/Envolverde

Fonte: mwglobal.org/ipsbrasil.net
Autor: Gustavo Capdevila - 9/Fevereiro/2010

Quando a cidade te deixa doente

Quando a cidade te deixa doente


Uma pesquisa acadêmica comprovou, no Brasil, que respirar o ar urbano carregado de partículas sólidas potencializa o risco de contrair doenças cardiovasculares.

Crédito: Alejandro Arigón/IPS
A vida em cidades poluídas afeta a saúde, especialmente dos mais pobres

Controlar não garante a saúde cardiovascular em cidades poluídas como São Paulo, pois as partículas suspensas no ar alteram a composição molecular do LDL, o “colesterol ruim”, deixando-o mais perigoso. A estrutura alterada do LDL (lipoproteína de baixa densidade) facilita o acúmulo de gordura nas artérias, isto é a arteriosclerose, cujo agravamento obstrui a circulação sanguínea e pode prejudicar órgãos vitais como coração e cérebro. O estudo que comprovou esse risco é a tese de doutorado da biomédica Sandra Castro Soares, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
A pesquisa foi feita com ratos, como de costume, mas colocando-os pela primeira vez no ambiente real, respirando o mesmo ar que as pessoas, perto de uma agitada avenida dessa superpovoada cidade. Um grupo de animais foi exposto a essa contaminação de rua, principalmente causada pelo tráfego de veículos, durante seus quatro primeiros meses de vida, que correspondem a 40 anos nos seres humanos, idade em que costumam acontecer os infartos. Outro grupo de cobaias foi mantido em câmaras com ar filtrado.
O primeiro grupo terminou o período de testes com as parede arteriais mais grossas, o LDL alterado e anticorpos contra essa modificação. Tudo aponta para maior risco de infarto. O problema são as micropartículas que “atravessam as barreiras nasais e pulmonares, entrando na circulação sanguínea”, explicou a biomédica ao Terramérica. “Não alteram a quantidade de gordura, mas sua qualidade” de aderir às paredes das artérias, acrescentou. A alteração atrai mais anticorpos, o que, por sua vez, atrai mais LDL, agravando o quadro.
Nas últimas décadas, São Paulo conseguiu reduzir pela metade a quantidade de partículas contaminantes em sua atmosfera. Mas a pesquisa revelou que esse ar ainda não é saudável, embora hoje tenha a qualidade recomendada pela Organização Mundial da Saúde, com uma concentração inferior a 50 microgramas de partículas por metro cúbico de ar, disse Lúcia Garcia, orientadora da tese de Soares no Laboratório de Poluição Atmosférica da FMUSP. As partículas são oxidantes e o LDL oxidado intensifica a arteriosclerose, aumentando os riscos de doenças vasculares para quem vive nas grandes cidades do mundo. Correr pelas ruas poluídas pode ser muito prejudicial para a saúde, advertiu Garcia.
De fato, há numerosos e variados efeitos da poluição urbana, revelados por estudos recentes em São Paulo. Nascem mais meninas do que meninos, aumentam os partos prematuros ou com peso inferior ao normal, bem como a infertilidade masculina e as mortes por doenças respiratórias. O câncer infantil e o hipotiroidismo são outras consequências possíveis. Nascer com baixo peso não é apenas uma questão de tamanho. Trata-se de “um feto mais imaturo”, com órgãos sem desenvolvimento total, o que pode deixar sequelas e inclusive causar morte precoce, explicou o médico Paulo Saldiva, que coordena o Laboratório de Poluição.
A Universidade de São Paulo está “entre as cinco do mundo que produzem mais conhecimentos na área” que relaciona saúde e meio ambiente, se orgulha Saldiva, lamentando que as descobertas tenham pouca influência nas políticas públicas brasileiras. A poluição como uma grave questão de saúde pública não mobiliza as autoridades sanitárias, mais preocupadas em combater doenças infecciosas como a gripe A, o HIV (vírus da deficiência imunológica humana, causador da aids) e a dengue, queixou-se. Além disso, as autoridades ambientais e os ecologistas dão pouca atenção à saúde dos seres humanos, acrescentou.
Por outro lado, a indústria do tabaco parece contente com as conclusões sobre os malefícios causados pela poluição urbana, pois pretende ganhar argumentos para relativizar os efeitos do cigarro, como o câncer de pulmão. Mas, de todo modo, “o cigarro é pior do que o ambiente contaminado”, destacou o pesquisador. O grande problema é que, enquanto o tabaco afeta apenas os que decidem fumar ou convivem com fumantes, da poluição do ar “ninguém escapa”. Além disso, “os mais pobres estão mais expostos”, por viajarem horas em ônibus que trafegam por ruas congestionadas, enquanto os ricos dispõem de automóveis fechados, com ar condicionado, disse Salvida.
A desigualdade social coincide com a injustiça ambiental, já que os mais pobres vivem em lugares inadequados, vulneráveis a inundações e deslizamentos, com escassez de água e maior contaminação, acrescentou Saldiva. A situação tende a piorar em São Paulo, onde milhares de automóveis se somam a cada dia aos seis milhões de veículos que já circulam pela cidade. Isto deixa lento o trânsito e obriga a população a respirar por mais tempo o ar carregado de resíduos, aumentando as possibilidades de contrair doenças vinculadas, disse.
As pesquisas do Laboratório de Poluição se concentram agora em examinar os efeitos nas pessoas que passam mais tempo nos lugares mais poluídos de São Paulo, como os controladores de trânsito nas avenidas mais congestionadas. O material em partículas e “talvez o ozônio” são os elementos que mais preocupam em termos de saúde, concluiu Saldiva.

Fonte: mwglobal.org/ipsbrasil.net - 15/Fevereiro/2010
Autor: Mario Osava

Migração entre países emergentes é maior

Migração entre países emergentes é maior


Relatório da ONU aponta que 50% dos emigrantes do mundo trocaram um país em desenvolvimento por outro em igual situação.
Estudo aponta barreiras à mobilidade; proporção de imigrantes na população mundial hoje é a mesma que há 50 anos - cerca de 3%

Karim Sahib -17.jul.07/France Presse
Trabalhadores estrangeiros em construção em Dubai (Emirados Árabes),
 cuja população é majoritariamente de imigrantes


Metade das pessoas que emigram no mundo se movimenta entre países em desenvolvimento, mais do que os 37% que vão de nações em desenvolvimento para países desenvolvidos. Dez por cento mudam-se de um país desenvolvido para outro.
Essas são algumas das informações com que o Pnud (Programa da ONU para o Desenvolvimento) pretende "desafiar estereótipos" ao divulgar hoje o relatório "Ultrapassar barreiras: mobilidade e desenvolvimento humano".
O relatório faz veemente defesa da mobilidade como uma das liberdades fundamentais e do movimento humano como "exercício dessa liberdade". Ele é o 19º inspirado no conceito de desenvolvimento como expansão da capacidade de exercer a liberdade, criado pelos economistas Amartya Sen, indiano, e Mahbub ul Haq (1934-1998), paquistanês.
O Pnud chama atenção para as barreiras políticas, econômicas e burocráticas que mantêm em cerca de 3% a proporção de emigrantes no total da população mundial, nível semelhante ao de 50 anos atrás, antes da mundialização financeira, da última onda de liberalização comercial e do fim do bloco soviético.
O relatório reconhece que cerca da metade dos estimados 214 milhões de imigrantes -dos quais cerca de 50 milhões em situação irregular- vive hoje no mundo desenvolvido.
Esse universo compreende os 38 países e regiões classificados como de "desenvolvimento humano muito alto", que incluem EUA, Canadá e Europa Ocidental, mas também Coreia do Sul, Hong Kong, nações do golfo Pérsico, da Oceania e dois países do Leste Europeu.
Nos EUA, por exemplo, a fatia de imigrantes no total da população aumentou 112% desde 1960, para 14,2%, enquanto na Europa ela cresceu 177%, para 9,7%. Mas o Pnud chama atenção para o peso da reunificação familiar nesse crescimento -corresponde a 70% do fluxo para os EUA- e para as diferenças entre os dois destinos.
Enquanto os EUA passaram a receber, a partir da crise da dívida, nos anos 80, enorme contingente da América Latina e do Caribe, na Europa a maior fatia de imigrantes vem do próprio continente. Esse movimento se acelerou a partir de 2004 com a adesão à União Europeia -que passou de 15 para 27 membros- dos países do antigo bloco soviético. O contingente de imigrantes das ex-colônias na África equivale a 23% dos imigrantes de origem europeia. O de latino-americanos, a menos de 10%.
Como notou Francisco Rodríguez, chefe da equipe de pesquisas do relatório, em entrevista à Folha, a maior parte do movimento emigratório ocorre dentro das regiões -63% dos africanos que emigram vão para a própria África, proporção que é de 65% na Ásia e de 69% na Europa. América Latina e Caribe são exceções -apenas 13% dos emigrantes mudam-se para outro país da região.
Isso não significa, ressaltou o pesquisador, que imigrantes dentro da África ou da Ásia (que inclui o Oriente Médio) sejam mais bem tratados do que se fossem para um país do Norte geopolítico.
Alguns dos casos mais graves de desrespeito aos direitos de residentes estrangeiros foram relatados em países como Malásia, África do Sul e os Estados petrolíferos do Conselho de Cooperação do Golfo, crescentes importadores de mão de obra. O Mercosul, em contraste, é citado como bom exemplo de liberdade de movimento.
O relatório do Pnud também calculou, pela primeira vez, o contingente de migrantes internos: 740 milhões de pessoas. E chama atenção para que um terço dos países ainda impõe algum tipo de restrição a esse movimento, incluindo Belarus, China, Mongólia e Vietnã. O documento defende as migrações internas como fator primordial de equalização de renda e acesso a serviços de saúde e educação.



Migrantes ajudam mais que países ricos


Remessas de dinheiro feitas por emigrantes para seus países de origem são quatro vezes maiores que ajuda oficial ao desenvolvimento.
Maiores beneficiários de remessas de divisas são países de médio e alto IDH, e não os mais pobres, que têm taxa de emigração menor

A Safaricom, companhia de telefones celulares do Quênia, ganha dinheiro facilitando a vida de famílias que têm parentes no exterior ou em cidades distantes. Por meio do serviço Mobile-Cash, lançado há dois anos, seus agentes distribuem aos usuários da empresa dinheiro depositado, por celular, pelos emigrantes.
O bem-sucedido negócio é contado pelo Pnud (Programa da ONU para o Desenvolvimento) no capítulo do relatório sobre migrações que analisa a importância das remessas para os países em desenvolvimento.
Segundo o relatório, o valor total desses envios equivaleu em 2007 a quatro vezes a ajuda oficial ao desenvolvimento, desembolsada principalmente pelos países mais ricos. Na América Latina e no Caribe, as remessas equivaleram a 60% da soma da ajuda internacional e dos investimentos diretos.
Em 2008, as remessas totalizaram US$ 308 bilhões, mas, por causa da crise econômica, devem cair neste ano para US$ 293 bilhões.
O Pnud não recomenda que governos contem com as remessas em seus projetos de desenvolvimento, mas reconhece sua importância permanente em países com menos de 1,5 milhão de habitantes, que têm a mais alta taxa de emigração em relação ao total da população, de em média 18,4%, contra a média mundial de 3%.
Entre os países que hoje mais dependem de remessas de emigrantes estão Egito, Bangladesh, El Salvador e Filipinas. Os recordistas são Moldova (leste da Europa) e Tadjiquistão (Ásia Central), onde as remessas correspondem respectivamente a 45% e 38% do PIB (Produto Interno Bruto).

Custo e pobreza

Os envios contribuem, entre outras coisas, para aumentar a escolaridade dos filhos de emigrados que ficam no país de origem. Mas uma das ironias apontadas pelo Pnud é que as populações dos 23 países classificados como de baixo desenvolvimento humano, a maioria na África, não são as principais beneficiadas pelas remessas.
Isso acontece porque emigrar custa caro, e a maioria dos que tentam a sorte no exterior sai dos países de médio e alto desenvolvimento -80% deles para destinos com posição superior no ranking do IDH, mesmo que na mesma categoria.
A taxa de emigração nos países de baixo desenvolvimento humano é de 4%, contra 8% nos 44 países de alto desenvolvimento humano. No paupérrimo Congo, por exemplo, um passaporte pode custar até US$ 500 em propinas, o dobro do PIB per capita (em poder de paridade de compra).
Ir do Vietnã, país de médio desenvolvimento, para o Japão, pode custar o equivalente a seis anos e cinco meses de salário médio. Da Colômbia, país de alto desenvolvimento humano, para a Espanha, um ano e oito meses.

Golfo e exploração

O relatório do Pnud confirma que os imigrantes menos qualificados são também os que mais sofrem abusos.
Nos seis países petrolíferos do Conselho de Cooperação do Golfo [Pérsico], por exemplo, os estrangeiros chegam hoje a 38,6% da população.
São na maioria operários ou trabalhadores domésticos vindos sem a família de países como Filipinas, Indonésia e Paquistão. Sob o sistema chamado de "kafala", o empregador é legalmente responsável por eles e pode determinar sua expulsão se julgar que violaram o contrato.

Relação é condicionada a empregos


O direito à mobilidade reivindicado pelo Pnud esbarra nos efeitos da crise econômica, que tende a aumentar a rejeição aos imigrantes, principalmente nos países onde houve aumento do desemprego. O relatório "Ultrapassar barreiras" usa como medida dessa rejeição pesquisa sobre valores feita em 46 países. Em metade desses, incluindo o Brasil, perto de 50% ou mais dos entrevistados defenderam a imposição de limites ou a proibição da imigração.
A outra opção mais votada em todos os países, e majoritária em 17, foi "deixe as pessoas virem, desde que haja empregos". Em apenas seis países, entre eles Vietnã, Marrocos e Etiópia, mais de 30% optaram por "deixar vir quem quiser".
A desconfiança no Brasil em relação a trabalhadores estrangeiros chama atenção porque, proporcionalmente, o país não se destaca no relatório nem como receptador de imigrantes nem como origem de emigrantes.
A taxa de emigração em relação ao total da população brasileira é calculada pelo Pnud em 0,5%, contra média mundial de 3%. A proporção de imigrantes na população caiu 1,6% ao ano desde 1960 e é estimada em 0,4% -taxa que, entre os 44 países de alto desenvolvimento humano, só é maior do que as de Cuba, Colômbia e Peru.
"[A rejeição] é um fato político que tem de ser levado em conta, mas nosso objetivo é confrontar as percepções com a realidade", diz Francisco Rodríguez, chefe da equipe de pesquisas do relatório. Ele aponta os vários estudos que mostram que, em geral, os imigrantes não tiram empregos dos nacionais, não oneram em demasia os serviços públicos e têm impacto positivo no recolhimento de impostos.
O documento do Pnud, no entanto, não reivindica a liberalização total das migrações entre países, reconhecendo que ela seria impraticável em termos políticos.
As propostas enumeradas incluem facilitar a entrada de trabalhadores pouco qualificados - hoje a maioria dos países privilegia imigrantes com alta qualificação-, reduzir os custos envolvidos nos movimentos migratórios e garantir os direitos humanos básicos dos imigrantes.
Apenas 41 países ratificaram a Convenção Internacional sobre a Proteção aos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e suas Famílias, de 1990. O Brasil, ao contrário da maioria dos vizinhos na América do Sul, não está no grupo.



Fonte: Folha de São Paulo - 05/Outubro/2009