27 junho, 2010

A justiça, a democracia e os sinos - José Saramago

A justiça, a democracia e os sinos

"E contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica"

por José Saramago

Impossibilitado de comparecer a Porto Alegre, ao II Forum Social Mundial (2002), o escritor português enviou este texto, cuja leitura marcou a plenária de encerramento.

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

"Não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre"

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

"Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social"

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

"A Declaração Universal dos Direitos Humanos (...) poderia substituir com vantagem (...) os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas"

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

"E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria (...) um governo do povo, pelo povo e para o povo?"

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas nos açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

"Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é"

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é

Fonte: Le Monde Brasil

16 junho, 2010

A nova revolução quirguiz

A nova revolução quirguiz

O aumento do preço da energia levou o povo às ruas e derrubou o presidente Bakiev. Não é possível prever se o governo interino conseguirá retomar o controle do Estado e corresponder às expectativas de uma população que afunda cada vez mais na pobreza. O Quirguistão está à beira de uma guerra civil.

Apresentado há apenas dez anos como um “oásis de democracia” no coração do Cáucaso, o Quirguistão está à beira da implosão e da guerra civil. No último dia 6 de abril, exasperados com o aumento dos preços da energia e a corrupção endêmica nos mais altos escalões do Estado, habitantes da cidade de Talas, no noroeste do país, saíram às ruas para manifestar sua cólera.
No mesmo dia, tomaram os principais centros administrativos da cidade e sequestraram o vice-primeiro-ministro e o ministro do Interior. No dia seguinte, a insurreição já havia tomado conta de Bishkek, a capital, onde 5 mil pessoas marchavam rumo ao palácio presidencial. O saldo de uma jornada de confrontos com as forças oficiais foi de 84 mortos e milhares de feridos.
Explosões de violência dessa natureza são um fenômeno desconhecido num país onde o fato mais relevante até então havia sido a morte de seis manifestantes por ocasião de enfrentamentos com a polícia em Asky, em 2002. Num primeiro momento, o presidente Kurmanbek Bakiev refugiou-se no sul, no seu feudo de Jalal-Abad, para tentar mobilizar os partidários da região. Uma vez que a contramanifestação organizada pelo governo em Osh, a segunda maior cidade do país, não conseguiu reunir mais que algumas centenas de pessoas, o presidente deixou o Quirguistão, em 15 de abril, e se encontra desde então no Cazaquistão.
Ninguém pode prever se o governo interino, dirigido pela antiga ministra das Relações Exteriores, Roza Otounbaeva, conseguirá retomar o controle do Estado e corresponder às expectativas de uma população que, a cada dia, vai afundando mais na pobreza.
A era Bakiev desponta desde já como um período de retrocesso na democratização do país. Quando ascendeu ao poder, em 2005, contando com os ventos favoráveis da “revolução das tulipas”, que promovera a derrubada do regime do presidente Askar Akayev, Kurmanbek Bakiev prometeu democracia e probidade.
Entretanto, mal assumiu suas funções, o novo presidente adotou práticas repressivas e deu mostras da mesma inclinação pelo nepotismo que seu predecessor. Sem demora, encampou a chamada “lei da família”,nomeando parentes e amigos para postos-chave nos serviços secretos e nas embaixadas, assumindo o controle absoluto das empresas nacionais.1
Em Bishkek, a própria palavra “privatização” é motivo de piada, pois se tornou sinônimo de confisco dos bens do Estado para fins pessoais. O confisco das empresas públicas mais lucrativas em proveito de Maxim Bakiev, filho do presidente, é um dos exemplos mais reveladores do sistema implantado em benefício de um clã capaz de cometer toda e qualquer exação para alcançar seus objetivos. Assim, os partidos da oposição e os veículos de comunicação sofreram, ao longo dos últimos meses, perseguições sempre mais intensas por parte das autoridades.
Entre outras, foram tomadas todas as medidas possíveis para impedir a difusão de informações provenientes da Itália, que davam conta da prisão do sócio de Maxim Bakiev, Yevgueni Gurevich, acusado de colusão com a máfia e desvio de fundos. De fato, Gurevich teria tramado calotes contra várias empresas de telecomunicações italianas, num montante de 2 bilhões de euros.2
Os métodos empregados pela família Bakiev para calar as críticas, quer neste caso quer em outros, não deixam de lembrar aqueles dos clãs mafiosos. Em 2006, o dirigente da oposição quirguiz, Omurbek Tekebayev, foi preso no aeroporto de Varsóvia; a polícia encontrou heroína em sua bagagem. Não demorou muito para descobrirem que se tratava de um golpe armado pelos serviços secretos quirguizes, então dirigidos por Zhanibek Bakiev, irmão do presidente. Em dezembro de 2009, o jornalista Genadi Pavliuk foi empurrado do alto de um prédio em Almaty, no Cazaquistão. A oposição suspeitou fortemente dos escritórios secretos do regime.

Território em disputa

O agravamento das dificuldades sociais constitui outro fator que desencadeou a derrubada do governo. Os dividendos obtidos com a exploração das minas de ouro de Kumtor, a principal fonte de renda nas exportações do país, vêm diminuindo, enquanto a participação da renda proveniente dos expatriados que vivem na Rússia (um terço do país) reduziu-se consideravelmente desde a crise econômica e financeira de setembro de 2008.
Segundo números fornecidos pelo Banco Mundial3, a dívida externa quirguiz alcançaria o montante de 2,2 bilhões de euros, ou seja, 48% do Produto Interno Bruto. Cerca de 40% dos cidadãos viveriam hoje abaixo do limite de pobreza, enquanto o salário mensal médio não superaria 50 euros. Edil Baisalov, um dos porta-vozes do governo interino, anunciou recentemente a falência do país, uma vez que as reservas em dinheiro do Estado não somariam mais que 986 milhões de soms – ou seja, 16 milhões de euros.4
A maior parte dos observadores internacionais avaliou esses eventos como sendo o resultado de uma luta de influência entre Washington e Moscou. De fato, o Quirguistão é o único país que permite a coexistência em seu território de bases militares americanas e russas. Embora o papel atribuído ao Kremlin pareça exagerado, seu reconhecimento imediato do governo interino indica o quanto Moscou parece satisfeito com a derrubada do presidente Bakiev. As relações entre os dois países se deterioraram após a assinatura, em fevereiro de 2009, de um acordo de ajuda econômica de US$ 2,1 bilhões em favor do Quirguistão.
Por ocasião daquela visita, o presidente Bakiev anunciou o fechamento iminente das instalações americanas. Mas isso não o impediu, após receber um quarto da quantia prometida, de concluir com Washington um novo acordo estipulando a manutenção da base. Essa afronta conduziu Moscou a suspender a ajuda.
Enquanto o Kremlin comemora a “mudança de regime” ocorrida em Bishkek, Washington parece mais constrangido. De fato, a base aérea de Manas é elemento-chave da estratégia dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão. Além do interesse político que representa a sua manutenção, ela se encontra também no cerne de um caso de corrupção. Com o objetivo de conservar suas posições na região, o Pentágono teria concluído acordos com a “família”, como já ocorrera no tempo do presidente Akayev, mas reservando, desta vez, os contratos mais lucrativos a Maxim Bakiev.5
Os maiores lucros teriam sido embolsados por ocasião da venda aos Estados Unidos, a preço de mercado, de óleo combustível doméstico comprado na Rússia a uma tarifa preferencial. Em 1º de abril, Moscou exigiu do Quirguistão que ele pagasse as taxas devidas sobre a venda de energia. Para justificar essa reviravolta, as autoridades russas alegaram a imposição de novas regulamentações alfandegárias sobre o óleo combustível reexportado para países terceiros.
O governo interino pede agora um inquérito sobre os escândalos do óleo combustível de Manas.6 Ao negociar com o clã Bakiev, com o objetivo de preservar suas posições na região, Washington optou por fazer vista grossa tanto para as promessas não cumpridas de democratização quanto para as questões de transparência.

Revolução feminina

Foi quando se juntou à oposição, na primavera de 2005, depois do presidente Akayev lhe ter negado o direito de concorrer a um mandato eletivo, Roza Otounbaeva, uma peça importante no jogo de xadrez político regional. Oriunda das melhores escolas do antigo bloco do Leste, ela seguiu carreira no âmbito do Ministério Soviético das Relações Exteriores até ser nomeada ministra da mesma pasta na jovem República quirguiz, após a queda da União Soviética. Em 2004, ela se encontrava na Geórgia, onde era representante especial das Nações Unidas durante a Revolução das Rosas. Em 24 de março de 2005, o dia da queda do regime de Akayev, ela participava de um ato de protesto ao lado de Bakiev.
Contudo, um ano apenas após a “revolução das tulipas”, Roza manifestou sua insatisfação perante uma plateia de jovens militantes vindos de todo o país: “Nada mudou, o regime de Akayev continua vivo”. E lamentou: “Nós somos um país de eterna transição. Os cidadãos não enxergam diferença alguma entre o poder e a oposição”.
Todavia, mostrou-se determinada e imbuída de esperança. “Há muito por ser feito para ampliar o campo da democracia. Chegou o tempo de formar partidos políticos.” A esse respeito, Roza Otounbaeva não dissimulava sua impaciência para com os países ocidentais, e em particular com a indiferença da Europa. “Eles nada fazem, a não ser outorgar microcréditos, enquanto nós precisamos tanto construir um sistema político multipartidário.”
Os eventos de abril revelam mais uma vez a fragilidade do Estado quirguiz. Em 2005, manifestações que não tinham mobilizado mais de 10 mil a 15 mil pessoas foram suficientes para derrubar o governo em um dia. O presidente Akayev, que tinha uma reputação de autocrata iluminado, não achara necessário dotar-se de um arsenal repressivo. Já as forças da ordem de Kurmanbek Bakiev não hesitaram em abrir fogo contra a multidão.
Nem por isso o regime deixou de ruir da mesma forma. O grande número de vítimas não augura nada de bom e revela o elevado nível de tensão num país que se gabava, até recentemente, de ser a Suíça da Ásia Central.

Recomeço

Formar um governo e estabilizar a situação não será nada fácil num meio ambiente político onde os partidos contam tantos chefes quanto militantes. Roza Otounbaeva e sua equipe deverão começar tudo do zero. Caberá a eles promulgar uma nova Constituição, criar administrações eficientes e instalar um Parlamento, mesmo que o sistema multipartidário ainda não tenha sido instaurado.
Tudo isso em meio a um contexto econômico muito preocupante. O fardo da dívida está ficando mais pesado e, por sua vez, os principais parceiros do Quirguistão vêm enfrentando grandes dificuldades, inclusive a Rússia. Pode um reformador, por puro voluntarismo e em plena recessão econômica, ser bem-sucedido ao conduzir uma transição rumo a um Estado democrático, num país do qual ele não controla nem as instituições nem a cultura?
Existe também grande preocupação em relação a uma possível cisão regional. Uma imensa barreira montanhosa, com desfiladeiros situados a mais de 3 mil metros de altitude, separa os principais polos urbanos: Bishkek, no norte, e Osh, no sul. Fomentada nas cidades do Sul, a “revolução das tulipas” havia derrubado o presidente Akayev, originário do norte. Os eventos ocorridos recentemente nas aglomerações do Norte acabam de forçar a queda do regime Bakiev, originário do sul. A demarcação entre norte e sul é uma realidade tão política quanto geográfica.
Contudo, o mosaico de componentes regionais, clânicos e étnicos que compõe a nação parece fragmentado demais para permitir a constituição de reais blocos políticos, como ocorreu, por exemplo, na Ucrânia, por ocasião da revolução laranja.
Os eventos do Quirguistão têm como pano de fundo a crise econômica mundial e o fracasso das políticas liberais da era pós-soviética. E sinalizam que as preocupações de ordem social estão voltando à tona nas repúblicas da Ásia Central. Em 1992, quando os dirigentes da nova Federação da Rússia operaram sua guinada liberal, reduziram as subvenções públicas e procederam a privatizações maciças, eles temiam uma violenta reação popular. Contudo, a liberalização dos preços e seu impacto desastroso sobre as condições de vida das populações não provocaram, na época, levante algum.
As principais crises que sacudiram a região no decorrer das duas décadas passadas foram motivadas por reivindicações políticas ou étnicas, e denunciaram com frequência manipulações eleitorais ou fatos de corrupção. Em Talas e em Bishkek, foi o aumento dos preços da energia que motivou a população a ocupar as ruas. A nova revolução quirguiz tem tudo para entrar na história como o primeiro movimento social da era pós-soviética.

1 “A inevitável lei da família no Quirguistão” [“Inevitable family rule in Kyrgyzstan”, Ferghana.ru, 6 de novembro de 2009.
2 “Quirguistão: o consultor financeiro da família Bakiev é sócio da máfia italiana?” [“Kyrgyzstan: Is the financial consultant of Bakiev’s family the associate of Italian mafia?”], Ferghana.ru, 10 de março de 2010.
3 www.worldbank.org.kg
4 Matt Siegel, “Economy in tatters, Kyrgyzstan awaits Russian aid”, AFP, Bishkek, 11 de abril de 2010.
5 Maxim Bakiev levantou 6 milhões de euros por mês vendendo combustível à base aérea de Manas. “Venda de combustível aos Estados Unidos em questão no Quirguistão” [“Fuel Sales to U.S. at issue in Kyrgyzstan”, New York Times, 11 de abril de 2010.
6 Alan Cullison, Kadyr Toktogulov e Yochi Dreazen, “Líderes quirguizes acusam governo de enriquecer por Estados Unidos” [“Kyrgyz Leaders say U.S. Enriched Regime”, Wall Street Journal, New York, 11 de abril de 2010.

Fonte: Le Monde Brasil
Autora:Vicken Cheterian é jornalista, autor de War and peace in the caucasus, Russia´s trouble 3d frontier, Nova York, Hurst/Columbia University Press, 2008.

10 junho, 2010

Armas Nucleares - Os países que não podem ter

Os países que não podem ter

No cenário de fronteira porosa entre tecnologia nuclear civil e militar, o Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares está longe do ideal. Casos como Irã, Coreia do Norte, Israel, Índia e Paquistão, no entanto, tornam real a ameaça e fazem do acordo um escudo necessário, apesar de esburacado.

A ideia do Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) tem origem nos anos 1950, quando três países – Estados Unidos, Rússia e Reino Unido - já detinham a arma atômica, e dois outros Estados – França e China – estavam a caminho de se tornarem potências nucleares, o que efetivamente ocorreu em 1960, para Paris e, em 1964, para Pequim.
Principais interessados em uma limitação da corrida atômica militar, considerando seu estatuto de potência mais avançada na matéria, os Estados Unidos, desde o início dos anos 1950, tentavam um “confinamento” diplomático do domínio estatal da bomba. Seguindo essa lógica, o presidente Dwight Eisenhower propôs, no dia 8 de dezembro de 1953, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a criação de uma agência encarregada de controlar o uso dos materiais nucleares(1).
Na ótica da paz mundial (e da manutenção de seus respectivos estatutos), as outras potências nucleares, ou aquelas prontas a sê-lo, rapidamente fizeram seus cálculos: elas também tinham interesse em um dispositivo para reconhecer seus progressos e interromper a “democratização” desse instrumento de poder mais que distintivo. Aliados objetivos não faltaram, portanto, à iniciativa.
Fundamentada no perigo de uma proliferação geral, a ideia de Eisenhower ganhou terreno, ficando muito tempo refém das relações de força entre Estados Unidos e União Soviética (naquele momento, mal acabara a Guerra da Coreia).
Após agitados debates, a ONU finalmente criou a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em outubro de 1956. Sua verdadeira missão consiste, segundo o artigo 3.5 de sua carta, em “garantir que os materiais físseis especiais e outros produtos, os serviços, equipamentos, instalações e informações fornecidas pela agência ou a seu pedido ou sob a sua direção ou controle não sejam utilizadas de maneira a servir a fins militares”. Em contrapartida, explica seu artigo 3.1, ela se propõe a “incentivar e facilitar, no mundo inteiro, a pesquisa, o desenvolvimento e a utilização prática da energia atômica para fins pacíficos”.
A AIEA era primeiro um guarda, depois um facilitador. E sob pena de se tornar um comitê técnico periférico e impotente, a AIEA deveria dispor de um tratado coercitivo, que ela se encarregaria de fazer respeitar. Não há guarda sem lei.

Manual de conduta

O TNP seria um “manual de conduta” com valor legal universal. Em 1º de julho de 1968, o texto do tratado foi assinado por 43 Estados (inclusive a Coreia do Norte). Ratificado no dia 5 de março de 1970, ele entrou em vigor por 25 anos e teve um indubitável sucesso, chegando a tornar-se o tratado mais “abrangente” do mundo (três Estados apenas – Israel, Índia e Paquistão – nunca o assinaram).
Em suas considerações iniciais, o texto retoma o objetivo do acesso universal à energia atômica civil e traça – já íamos esquecendo – o ideal de uma humanidade sem armas nucleares.
Os signatários pretendem “promover a cooperação internacional e o reforço da confiança entre Estados, com a finalidade de facilitar o fim da fabricação de armas nucleares, a liquidação de todos os estoques existentes das referidas armas e a eliminação das armas nucleares e seus vetores dos arsenais nacionais, através de um tratado sobre o desarmamento geral e completo sob um controle internacional estrito e eficaz”. Nesse sentido, o presidente norte-americano Barack Obama, em seu discurso em Praga sobre a “opção zero” – menos audacioso do que se comentou –, poderia ter lido o TNP(2).
Com essa “visão edificante”, o TNP, como foi então redigido, santifica a tecnologia atômica militar. Qualquer Estado signatário pode propor emendas ao tratado, ou retirar-se, caso “eventos extraordinários, relacionados ao objeto do presente tratado, comprometam os interesses supremos de seu país”. O verdadeiro coração do texto trata do dispositivo de não-difusão dos planos e materiais constitutivos das armas e descreve a renúncia militar dos “Estados não-detentores de armas nucleares” assim como o regime de inspeção ao qual eles se submetem, sob supervisão da AIEA, em troca do acesso a tecnologias civis garantidas pelos “Estados detentores de armas nucleares”(3).
Aí está a força do tratado, e também sua ambiguidade: para que as concessões livremente consentidas pelos não-detentores sejam compensadas, é necessário que os detentores reduzam – progressivamente, mas de maneira real – seus arsenais(4), divulguem sua tecnologia nuclear civil e adotem doutrinas de emprego muito restritivas, de modo que os não-detentores não se sintam ameaçados. Nenhum desses três pontos jamais satisfez os Estados não-detentores, mas, apesar dos numerosos debates(5), o TNP conseguiu forjar uma legitimidade, até ser revalidado, em 1995, por tempo indeterminado. Em 1998, um protocolo adicional ao tratado garantiu total liberdade de movimento para os inspetores da AIEA em missão(6).

Fragilidades e fracassos

Três dificuldades centrais fragilizam hoje o tratado: em primeiro lugar, a fronteira cada vez mais porosa entre tecnologias nucleares civis e militares; depois, o caráter declaratório do processo de controle (os Estados informam a AIEA sobre as instalações a visitar, mas podem esconder algumas), além da não-definição real das “provas” de eventuais faltas; e, enfim, a possibilidade de alguns Estados não-detentores ligados ao tratado continuarem suas manobras para chegar ao “limiar” nuclear ou além dele, ao longo de uma sequência assinatura-ratificação-aplicação que pode se arrastar por muito tempo(7).
Apesar das precauções do texto com a não-proliferação, os “fracassos” foram muitos. Mas seriam fracassos que podem ser atribuídos propriamente ao TNP? Vale a pena colocar a questão.
O principal ponto a levantar é a ascensão atômica dos irmãos inimigos do sul-asiático, Índia e Paquistão, que se tornaram potências nucleares militares respectivamente em 1974 e em 1985 – e não-signatários do TNP. No caso da Índia, Washington, até 1965 e, em seguida, Moscou ajudaram conscientemente Nova Délhi, por razões de equilíbrio geopolítico, no contexto da guerra fria. Mas esse “percurso de tutorado” cristalizou-se principalmente diante da criação do TNP e de sua ratificação geral em 1970. As apostas já estavam feitas antes de 1974, quando a primeira bomba da Índia explodiu(8).
Já o caso do Paquistão, alguns Estados, entre os quais a França, transferiram seus saberes civis nucleares pensando que Islamabad se juntaria ao TNP. Mas não se juntou e, após o fim dessa ajuda, a bola passou para a China, até o sucesso paquistanês de 1985. Uma “ruptura de contrato” do TNP por parte de um dos Estados detentores da arma nuclear? Tecnicamente, não, já que Pequim só aderiu ao TNP em 1992.
Israel constitui o outro grande fracasso, o mais problemático da lista dos não-signatários, já que acompanhado da circunstância agravante de uma negação oficial da realidade (contrariamente ao Paquistão e à Índia) e de um apoio impávido dos Estados Unidos.
Do lado dos signatários, Taiwan, Coreia do Sul e Japão realmente se tornaram tecnicamente “países do limiar”. Mas Taiwan não poderia violar o TNP, pois seu estatuto o impede de ser signatário (política de uma única China). Washington acabou “bloqueando” seus projetos. A Coreia do Sul e o Japão, signatários tardios (1975 e 1976) e potências tecnológicas de ponta, continuam por sua vez sob a tutela e a “garantia de segurança nuclear” estadunidense.
No caso do Irã, signatário do tratado, ele aparentemente violou seus compromissos pesquisando para obter a arma. Em matéria de garantias, ninguém, não mais a China nem a Rússia, pode reivindicar um apadrinhamento bilateral de contenção eficaz em relação ao Irã.
Já a Coreia do Norte coloca em avaliação um caso igualmente grave, visto que, contrariamente ao Irã, retirou-se do tratado (em 2003) e seus progressos, embora tardios, continuam cobertos, mesmo que indiretamente, pela China. No entanto, esta parece ter cessado sua ajuda direta a Pyongyang depois de ratificar o TNP.

Ainda uma defesa

Visto dessa maneira, o quadro não é dos mais brilhantes. Mas podemos apreciá-lo de outra maneira. Com exceção da Coreia do Norte, nenhum Estado abandonou o tratado. E, até 2010, nenhum signatário não-detentor da bomba conseguiu obtê-la. Desde o nascimento do TNP, o mundo não conheceu guerra nuclear nem situações extremas comparáveis à de Cuba em 1962.
As zonas desnuclearizadas por tratado (disposição prevista pelo TNP, no seu artigo 79) multiplicaram-se. Primeiro foi a Antártica, em 1959 (antes do TNP), o Pacífico Sul em 1985, América Latina em 1995. Cazaquistão, Ucrânia e Bielorússia desmantelaram seu arsenal, assim como a África do Sul e a Suécia. Brasil e Argentina renunciaram a suas pesquisas.
Tudo isso não é efeito direto do TNP, mas o tratado de 1968 não deixa de ser o pano de fundo legal e moral sobre o qual se dão as negociações, bilaterais ou não, que levaram a esses sucessos. Sozinha, a prorrogação de 1995, “por tempo indeterminado”, já dá a medida da importância assumida por esse texto (que poderia ter sido teoricamente prorrogado apenas de maneira limitada, por mais 25 anos).
A eficiência do TNP coloca-se nesses termos? Se a expectativa for a de uma “opção zero” ideal, ele não o é, e continua particularmente dependente de doutrinas de dissuasão “responsáveis” por parte dos detentores (noções de não-emprego e de estrita suficiência, a exemplo da França).
Talvez seja necessário pensar qual seria a situação se o TNP não existisse. Na verdade, é mais fácil levantar o que o tratado não conseguiu impedir do que modelar o que ele conseguiu evitar. No balanço, com a polêmica sobre o programa iraniano chegando ao ápice, temos de concordar com seus detratores, de que o TNP é um escudo cheio de buracos, frente a uma ameaça – a proliferação – que ele não fez desaparecer. Ainda assim, continua sendo um escudo e o que vemos através dele não faz ninguém querer mandá-lo às favas.

(1) Discurso chamado “Atoms for Peace” [Átomos pela Paz]. Texto integral: www.atomicarchive.com
(2) Ler Selig S. Harrison, “Obama e a ameaça das armas nucleares”, Le Monde Diplomatique Brasil, abril de 2010.
(3) O acordo de garantia de cada Estado com a AIEA é assinado, teoricamente, 180 dias após a adesão ao tratado.
(4) Coisa que eles se comprometem a fazer no artigo 6.
(5) O Movimento dos Não-Alinhados (MNA, que conta com 118 países), pede regularmente uma maior abertura dos detentores no que diz respeito ao compartilhamento da tecnologia civil (seguindo o TNP) e a ratificação do tratado por Israel.
(6) Sessenta signatários entre 189 aplicam o protocolo adicional.
(7) Ler Pierre Vandier, La prolifération nucléaire en Asie menace-t-elle l’avenir du TNP? [A proliferação nuclear na Ásia ameaça o futuro do TNP?], Collège Interarmées de Défense, Paris, 1º de outubro de 2005. Lembremos que a França só ratificou o TNP em 1992.
(8) Muito mais grave é o acordo de cooperação nuclear assinado por Washington com Nova Délhi em 2006, que parece recompensar o desvio do TNP efetuado pelos indianos. Ler “Prime nucléaire pour l’Inde”, La valise diplomatique [Brinde nuclear para a Índia, A mala diplomática], Le Monde Diplomatique, 23 de novembro de 2006.
(9) “Nenhuma disposição do tratado usurpa o direito de qualquer grupo de Estados concluir tratados regionais com o objetivo de garantir a total ausência de armas nucleares em seus territórios.”

Fonte: Le Monde Brasil

Autor: Olivier Zajec é encarregado de estudos da Companhia Européia e Inteligência Estratégica (Paris).

Assim se desmoralizam as Nações Unidas

Assim se desmoralizam as Nações Unidas

A ONU nasceu, no segundo pós-guerrra, para administrar o mundo conforme os interesses e as visões das potências vencedoras na guerra. Embora aparecesse como um instrumento de democratização nas relações políticas internacionais – de que a existência da Assembléia Geral é a expressão mais direta -, ela reproduziu as relações de poder existentes no mundo, ao depositar em um Conselho de Segurança o poder real da organização.
Composto pelos 4 países vencedores da Segunda Guerra como seus membros permanentes, – EUA, Inglaterra, França, Rússia, aos que se acrescentou a China, ao se tornar potência nuclear a normalizar suas relações com os EUA -, que detêm poder de veto – a que basta um voto contra – sobre qualquer decisão que tome a Assembléia Geral.
Significativas são as decisões anuais de fim do bloqueio norteamericano sobre Cuba e de retirada das tropas israelenses dos territórios palestinos, para que se funde um Estado palestino, que são reiteradamente aprovadas por esmagadora maioria, contra o voto dos EUA, de Israel e de algum país exótico, às vezes. Mas basta o poder de veto dos EUA, para inviabilizar sua aprovação.
Sem ir muito longe no tempo, - quando a ONU foi instrumento das potências ocidentais na guerra fria – recordemos apenas que os EUA e a Inglaterra não conseguiram maioria no Conselho de Segurança para invadir o Iraque, com alegações que rapidamente se revelaram falsas.
Ainda assim essas duas potências invadiram, destruíram o Iraque, onde se encontram até hoje, provocando centenas de milhares de mortos. Que punição adotou a ONU em relação a essa tremenda brutalidade, não apenas por ter sido tomada contra a posição da ONU, mas pelos massacres que produziu e segue produzindo, além da destruição de lugares históricos, da mais antiga civilização do mundo? Nem formalmente tomaram decisão alguma de punição.
E agora essa mesma instituição, - que tem no seu Conselho de Segurança, como membros permanentes, com poder de veto, às maiores potências bélicas, aos maiores fabricantes de armamentos do mundo, aqueles que abastecem a todos os conflitos bélicos existentes no mundo, a que se supõe que a ONU deveria tratar de que não existissem ou que os pacificasse -, aprova punições ao Irã sob suspeita de que esse país poderia chegar a fabricar armamento nuclear. Isso, depois dos governos do Brasil e da Turquia terem conseguido do governo do Irã as exigências que as próprias Nações Unidas haviam solicitado.
Uma instituição que nada faz para punir a Israel, que assumidamente possui armamento nuclear – com que ameaça, regularmente, de bombardear o Irã -, que ofereceu esse armamento à Africa do Sul na época dos governos racistas – conforme provas recentes de um livro, que publica documentos que deixam claro esse oferecimento, que ocupa violentamente os territórios palestinos. Não faz e atende as demandas de Israel de que o Irã seja punido.
Uma decisão promovida pela maior potência bélica da história da humanidade, que possui bases militares em mais de 150 países, que foi o único pais que atirou bombas atômicas sobre outro – em Hiroshima e Nagasaki -, matando milhões de pessoas, que tem um histórico de agressões, invasões – como até hoje ocorre também no Afeganistão, com aprovação da ONU -, de golpes militares, de assassinatos de mandatários de países estrangeiros, de guerras, invasões e ocupações de outros países.
Essa instituição, hegemonizada por essa potência, aprovou sanções contra o Irã, depois de deixar impune a todos os atos de agressão militar dos EUA, cujo arsenal de guerra não deixa de se aperfeiçoar e se multiplicar. O que esperar de uma instituição assim, controlada pelas potências que protagonizaram as grandes guerras e seguem com seu papel imperialista, contra a grande maioria dos países do mundo? Por que não submetem essa decisão à Assembléia Geral, para constatar a reação de todos os governos do mundo, vítimas da dominação imperial dessas potências bélicas que, como disse Lula, necessitam inimigos, a quem diabolizar, para tentar evitar que sejam elas mesmas julgadas e condenadas como as maiores responsáveis pelas guerras que ainda assolam o mundo, fomentadas por elas mesmas.

Fonte: Blog do Emir (10/06/2010)

Sanções ao Irã


Só sanções não esgotam o dossiê iraniano
Eventual acordo nuclear não bastará para restabelecer direitos humanos no Irã nem fará cessar apoio ao terror
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SE SANÇÕES SÃO DE DUVIDOSA EFICÁCIA E SE NEGOCIAÇÃO É REMOTA, RESTA O QUE BRASIL TEME: QUE EUA BUSQUEM MUDAR O REGIME
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O próprio presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reconheceu ontem, no pronunciamento sobre o pacote de sanções, que o governo iraniano "não mudará seu comportamento da noite para o dia".
Se é assim, quais os passos seguintes para que o Irã sinta "os crescentes custos associados à sua intransigência", sempre segundo Obama?
Primeiro passo: uma escalada de sanções, já anunciada pelo secretário americano da Defesa, Robert Gates, em entrevista na semana passada ao serviço de rádio governamental "Voz da América".
Gates via a resolução do Conselho de Segurança como "uma nova plataforma legal que permite que países e organizações como a União Europeia adotem individualmente ações próprias mais rigorosas, que irão muito além do que a resolução da ONU determina".
A julgar pelos antecedentes, é improvável que o Irã se curve ante quaisquer sanções. As ontem aprovadas representam o quarto pacote. Nenhum dos três anteriores impediu o país de continuar enriquecendo urânio e de semear dúvidas na comunidade internacional sobre as reais finalidades de seu programa nuclear.

VIA DUPLA

Estados Unidos e União Europeia também já adotaram sanções individuais contra o Irã, à margem da ONU, igualmente sem o resultado desejado.
Sempre segundo Washington, as sanções eram parte do que se chamava de via dupla, composta por pressão (na forma de sanções) e negociações. O pressuposto é o de que as sanções levariam o Irã a negociar, quando e se sentisse o "custo associado à sua intransigência".
Trata-se, a princípio, de outra improbabilidade. Do ponto de vista iraniano (e turco-brasileiro), a negociação deveria ter sido engatada a partir do momento em que o Irã entregou carta à AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), referendando o acordo Brasil/Turquia/Irã.
A AIEA é a instância adequada para a negociação nesse caso, e os iranianos estavam esperando uma resposta ao acordo de parte do chamado Grupo de Viena (EUA, França e Rússia, além da própria AIEA, cuja sede fica em Viena). Os EUA nem esperaram a resposta de Viena, que chegou horas antes de as sanções serem votadas.
"Não foi dado tempo ao Irã para reagir às opiniões do Grupo de Viena, incluindo a proposta de um encontro técnico para discutir detalhes", como disse a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Luiza Ribeiro Viotti, ao justificar o voto contra as sanções.

AGENDA OCULTA

É evidente que essas circunstâncias ficam longe de criar qualquer estímulo para a negociação, ainda mais com um país que tem notórias e conhecidas desconfianças em relação ao Ocidente - aliás recíprocas. Se as sanções são de duvidosa eficácia e se a negociação parece uma hipótese remota, resta o que o governo brasileiro teme: que os Estados Unidos busquem mudar o regime iraniano.
O discurso de Obama dá margem para essa interpretação algo conspiratória. Nele, o presidente não se limitou a tratar do programa nuclear iraniano. Mencionou também a eleição presidencial no Irã do ano passado, que será "lembrada pela maneira como o governo iraniano suprimiu brutalmente a dissensão e matou inocentes, incluindo uma jovem que deixou morrer na rua".
Citou igualmente a ameaça iraniana à "estabilidade de seus próprios vizinhos, ao respaldar o terrorismo", o que significa que o governo do Irã "é uma ameaça à justiça em toda parte".
Como é óbvio, um eventual e distante acordo nuclear não será suficiente para restabelecer o respeito aos direitos humanos no Irã nem para fazer cessar o apoio ao terrorismo. Logo, é razoável supor que as sanções não esgotam o dossiê Irã na agenda norte-americana.


Voto do Brasil no Conselho de Segurança da ONU

"Senhor presidente,
O Brasil votará contra a resolução.
Fazendo isso, nós estamos honrando os propósitos que nos inspiraram nos esforços que resultaram na declaração de Teerã no dia 17 de maio.
Nós faremos isso porque não acreditamos que sanções são um instrumento efetivo no caso. Sanções provavelmente levarão ao sofrimento do povo do Irã e ajudarão àqueles, de todos os lados, que não querem que o diálogo vença.
Experiências passadas da ONU, notadamente o caso do Iraque, mostram que uma espiral de sanções, ameaças e isolamento podem ter conseqüências trágicas.
Nós votaremos contra também porque a adoção de sanções vai contra os esforços de sucesso do Brasil e da Turquia em fazer o Irã negociar uma solução para seu programa nuclear.
Como o Brasil declarou repetidamente, a declaração de Teerã adotada no dia 17 de maio é uma oportunidade única que não deve ser perdida. Foi aprovada nos níveis mais altos da liderança iraniana e endossada pelos seus parlamentares.
A declaração de Teerã promove uma solução que irá assegurar o exercício do Irã do uso pacífico da energia nuclear, enquanto assegura de modo verificável que o programa nuclear iraniano tem propósitos pacíficos.
Nós estamos firmemente convencidos de que o único jeito possível para atingir esse objetivo coletivo é assegurar a cooperação do Irã através de diálogos efetivos e negociações.
A declaração de Teerã mostrou que o diálogo e persuasão podem fazer mais que ações punitivas.
Seu propósito e resultado eram construir confiança necessária para dirigir todos os aspectos do programa nuclear do Irã.
Como foi explicado ontem, a declaração conjunta removeu obstáculos políticos para a materialização da proposta da AIEA ( Agência Internacional de Energia Atômica) de outubro de 2009. Muitos governos, instituições altamente respeitadas e indivíduos reconheceram seu valor como um importante passo para uma discussão mais ampla do programa nuclear iraniano.
O governo brasileiro se entristece que a declaração conjunta nunca recebeu o reconhecimento político que merecia, nem foi lhe dado o tempo necessário para dar frutos.
O Brasil considera não-natural correr para sanções antes que as partes envolvidas possam sentar e conversar sobre a implementação da declaração. As repostas do grupo de Viena (AIEA) a carta de 24 de maio do Irã, que confirmaram seu comprometimento com a declaração, foram recebidas há algumas horas. Não foi dado tempo ao Irã para reagir às opiniões do grupo de Viena, incluindo a proposta por um encontro para discutir os detalhes.
A adoção de sanções nestas circunstâncias manda uma mensagem errada que poderia ser o começo de uma reunião construtiva em Viena.
Também é de nossa grave preocupação a maneira em que o membros permanentes do Conselho de Segurança, junto com membros não-permanentes, negociaram em portas fechadas entre eles durante meses.
Senhor presidente,
O Brasil considera da maior importância o desarmamento e não-proliferação e nosso passado neste assunto é impecável.
Nós também afirmamos, e reafirmamos agora, que é imperativo que toda atividade nuclear seja conduzida sob a conduta da Agência Internacional de Energia Atômica. As atividades nucleares do Irã não são exceção.
Nós continuaremos a acreditar na declaração de Teerã é a política correta e deve ser perseguida. Nós esperamos que todas as partes envolvidas tenham a sabedoria de longo prazo para entender isso.
Na nossa visão, a adoção de novas sanções pelo Conselho de Segurança irão atrasar, ao invés de acelerar ou garantir o progresso da questão.
Nós não deveríamos perder a oportunidade de começar um processo que pode levar a uma solução pacifica e negociada para a questão.
As preocupação em relação ao programa nuclear do Irã colocadas hoje não serão resolvidas até que o diálogo comece.
Ao adotar sanções, este Conselho está tomando um dos dois caminhos que deveriam correr em paralelo -- em nossa opinião, está tomando o errado.
Obrigado."
A representante permanente do Brasil no organismo, a embaixadora Maria Luiza Ribeiro Viotti, pronunciou o voto contrário à Resolução 1929/2010. (09/06/2010)
 
Fonte: Folha de São Paulo - 10/06/10