03 agosto, 2010

Como o aquecimento global vai afetar o Brasil

Como o aquecimento global vai afetar o Brasil
E que medidas o país precisa adotar agora para amenizar os impactos negativos das mudanças climáticas

As mudanças climáticas já se impõem como um dos principais desafios para o Brasil no século XXI. O recente consenso científico sobre o impacto do aquecimento global aponta obstáculos que o país tem de começar a enfrentar desde já. Caso contrário, as conseqüências podem ser devastadoras. Uma boa comparação é o estado febril em uma pessoa. Um aumento de 2 graus Celsius provoca várias perturbações no funcionamento do organismo humano. Os batimentos cardíacos ficam mais lentos e a transpiração aumenta. Se a elevação for de 5 graus, torna-se grave. Com uma febre de 42 graus, como na malária, a pessoa sofre convulsões. Pode até morrer. Com o planeta, acontece algo semelhante. Segundo os cientistas, se a temperatura sobe 2 graus, sistemas de chuvas e secas já se alteram, mas as formas de vida que conhecemos ainda conseguem se adaptar. Com uma elevação de 5 graus, o clima da Terra entra em colapso. Isso exterminaria a agricultura e a pecuária em boa parte das zonas tropicais, inundaria cidades litorâneas e tornaria freqüentes os furacões em quase todos os oceanos, inclusive o nosso Atlântico Sul.

SOB AS ONDAS
Simulação de como ficaria a zona sul do Rio de Janeiro se o nível do mar
subisse 12 metros. Pesquisadores dizem que isso poderia ocorrer, no fim
do século, com o derretimento da Groenlândia e de parte da Antártida

Esse cenário preocupante é resultado de uma alteração na atmosfera da Terra. Um conjunto de gases - principalmente o carbônico - regula a quantidade de calor do Sol absorvida pela Terra. A queima de combustíveis fósseis e das florestas vem lançando quantidades inéditas desses gases na atmosfera. Hoje, sua concentração é duas vezes maior que a dos últimos 650 mil anos. Nesse intervalo de tempo, a Terra atravessou meia dúzia de eras glaciais e esquentou entre elas. Mas o calor que virá agora pode ser maior que o de qualquer desses períodos. O aquecimento já começou. Em 1905, quando a atividade industrial era menor, a temperatura média do planeta era de 13,78 graus Celsius. Hoje, está em torno de 14,50 graus. Até o fim do século, vai crescer para algo entre 16,50 e 19 graus - numa estimativa conservadora.
O prognóstico oficial sobre as conseqüências práticas de um mundo mais quente será divulgado na semana que vem por um painel de cientistas, o IPCC. Coordenado pela Organização das Nações Unidas (ONU), ele concentra uma elite de 2.500 dos principais pesquisadores de mudanças climáticas. Esse comitê, formado em 1988, atualiza as informações sobre o clima e suas conseqüências. Ele avalia milhares de estudos e deles extrai o que há de consenso científico. No início de fevereiro, o IPCC divulgou as previsões sobre aumento de temperatura da Terra. Na semana que vem, um grupo de pesquisadores representantes dos 130 países que integram o painel, reunidos em Bruxelas, na Bélgica, vai descrever como essas mudanças climáticas afetam cada país.
O Brasil deverá sofrer bastante. Estudos realizados por pesquisadores nos últimos meses já revelam o que pode acontecer com nosso país. ÉPOCA ouviu 12 dos principais cientistas que descrevem os impactos sobre nossa geração e a de nossos filhos. Não são previsões infalíveis. Se há praticamente consenso sobre a gravidade do aquecimento global, os cientistas divergem ao especular sobre seus impactos. Apesar do grau de incerteza, essas pesquisas vão nortear as adaptações necessárias para sobrevivermos nesse novo mundo. A seguir, apresentamos as principais ameaças ao Brasil e um levantamento inédito do que deve ser feito para reduzir seu impacto.

NA ROTA DOS FURACÕES

A primeira cena que vem à cabeça quando se fala em aquecimento global são cidades submersas pela elevação do nível do mar. A imagem da zona sul do Rio de Janeiro alagada é uma possibilidade, mas, se isso ocorrer, dificilmente será antes de 2100. O futuro das casas litorâneas depende do comportamento imprevisível das grandes geleiras da Groenlândia e da parte ocidental da Antártida. Algumas pesquisas mostram que as fraturas na capa de gelo podem provocar um desmoronamento em larga escala, com centenas de quilômetros de extensão, numa questão de meses, a qualquer momento. Se isso acontecer, o nível do mar poderá subir até 12 metros. A melhor comparação é o que houve 125 mil anos atrás, antes da última era glacial. A temperatura da Terra estava em um nível equivalente ao que pode ser atingido no fim deste século. Naquele tempo, a redução dos gelos polares fez o mar subir até 6 metros. Isso bastaria para que as ondas chegassem ao 2° andar de prédios no litoral.
As previsões mais moderadas para o país sugerem a elevação de 58 centímetros no nível do mar. Isso já poderia provocar ressacas mais intensas. "Nesse caso, o mar fica com ondas de 3 metros em cima de uma elevação de até 1,5 metro", afirma Claudio Freitas Neves, pesquisador do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. "Apesar de o mar retroceder depois de algumas semanas, o estrago seria grande", diz Neves. Essas ressacas podem aumentar a erosão em uma grande faixa litorânea do país, acabando com boa parte das praias. Um estudo do Inpe alertou sobre a possibilidade de esse processo causar prejuízos a 42 milhões de pessoas que vivem na costa. Os pesquisadores também chamam a atenção para a possibilidade de ocorrência de ciclones e furacões no Sul e Sudeste, como o furacão Catarina, que assolou o Sul do país em 2004. Esses eventos podem chegar ao litoral de São Paulo e ao do Rio de Janeiro.

O QUE FAZER

Para lidar com isso, o Brasil vai ter de comprar ou desenvolver sistemas de alerta contra furacões, como os usados pelos Estados Unidos e pelo Japão. É uma forma de retirar a população quando a tempestade se aproxima e reduzir, pelo menos, as mortes. Também será preciso investir em estudos sobre o litoral. Um dos principais obstáculos das projeções sobre elevação do nível do mar é a falta de um mapa cartográfico da costa brasileira. "Não sabemos onde o mar vai chegar, pois não temos dados precisos da topografia de nossas praias", diz Neves. O pesquisador afirma que a grande maioria de cidades e portos brasileiros - como o de Santos e o do Rio - não tem marcações no chão, chamados de marcos topográficos, para assinalar as elevações no solo. "Sem esses números, é impossível pesquisar", diz Freitas.

MEIA FLORESTA AMAZÔNICA

O desaparecimento completo da floresta está entre as previsões mais pessimistas. Isso pode acontecer se a temperatura média da região aumentar mais de 5 graus. E essa elevação pode chegar a 8 graus. "Seria um caminho sem retorno", diz Carlos Nobre, climatologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A previsão mais aceita para a região é um aumento de temperatura de cerca de 3 graus até 2100. Nobre afirma que, nessa simulação, a floresta perderia mais da metade de sua cobertura original. "Pode acontecer uma união entre a grande savana da Venezuela e a parte central do Brasil", diz. Seria um campo com algumas árvores, mas dominado por arbustos e capim, bem menos imponente que a floresta atual.
Um estudo realizado em dez anos pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) encontrou algumas pistas sobre como a floresta desapareceria. Segundo o biólogo Daniel Nepstad, coordenador do estudo, a temperatura elevada aumenta os períodos de estiagem. A queda na umidade natural da floresta acaba com o vapor de água da transpiração das plantas, que protege as árvores das queimadas. A vegetação fica mais exposta ao fogo. Como o fogo agrava a seca, cria-se um ciclo de destruição. O baixo nível dos cursos da água pode deixar grande parte da população local com problemas de transporte e alimentação. O desaparecimento de metade da Floresta Amazônica também pode reduzir em até 35% a umidade nas regiões Sul e Sudeste do país, afetando os ciclos de chuvas.


ALAGAMENTO
Motoristas em um túnel alagado em São Paulo. Esta cena pode se tornar mais
comum, com o aumento de temporais no Sudeste

O QUE FAZER

Salvar a floresta depende de algumas ações preventivas. A primeira delas é a criação de mais unidades de conservação, como reservas e parques ecológicos, para conter o fluxo devastador. As pesquisas do Ipam concluíram que a porção mais importante a ser preservada é o sudeste da floresta, entre os Estados do Pará e do Maranhão. "Essa região é fundamental para garantir a umidade, responsável pelas chuvas em toda a Região Norte", afirma Nepstad. Uma segunda ação seria o reflorestamento, com espécies nativas, das áreas já degradadas. "É uma forma de criar um mecanismo para capturar carbono e ao mesmo tempo restabelecer a umidade na região", diz ele. Essas árvores também podem ser utilizadas pela indústria de celulose e nas siderúrgicas. O reflorestamento pode ser intercalado com sistemas de exploração da madeira nativa, a partir de práticas não-predatórias. Mas a ação mais importante é a criação de programas para acabar com a utilização do fogo para limpar o solo. São essas queimadas que saem do controle e carbonizam florestas já fragilizadas. "Sem o combate ao uso do fogo, não há como conservar a Amazônia", diz Nepstad.

UM DESERTO NO NORDESTE

O Nordeste brasileiro é a região mais sensível ao aquecimento global. Podemos ter o primeiro deserto do país em uma área com 32 milhões de habitantes. Caso esse cenário se torne real, uma nova onda de migração pressionaria as capitais do Nordeste e Sudeste. Seriam os primeiros refugiados do clima do Brasil. A depressão sertaneja, entre os Estados da Bahia e do Piauí, é a região mais crítica. Os pesquisadores traçam três cenários para o semi-árido brasileiro. Mesmo no mais favorável, com a elevação da temperatura em 1,5 grau, parte do lençol freático poderá desaparecer. Os açudes construídos desde o tempo do Império para abastecer a população nos períodos de seca podem sumir. Com a falta de água subterrânea para a irrigação e os açudes com seus limites baixos, teríamos um ambiente pior que o registrado na seca de 1983. Paradoxalmente, chuvas incomuns também podem ocorrer. Como em 2004, quando choveu em um mês mais que toda a taxa anual. Isso aumenta a erosão do solo.

O QUE FAZER

Apesar dos prognósticos ruins, medidas de conservação ambiental podem evitar a desertificação. No caso de um cenário de aquecimento global de até 2 graus, o processo pode ser freado. O primeiro passo seria a criação de áreas protegidas. Hoje, só 0,5% da caatinga está em unidades de conservação. Evitar que esses remanescentes sejam destruídos preserva a cobertura de árvores, fundamental para interromper a desertificação. Ao mesmo tempo, será preciso melhorar o acesso à água, com cisternas ou barragens subterrâneas. A idéia é colocar um impermeabilizante - que pode ser até uma lona de plástico - para evitar que a água dos rios temporários seja absorvida pelo solo durante a estiagem. "Estamos trazendo tecnologias de outros semi-áridos, como Israel e México, para garantir a sobrevivência da agricultura familiar", afirma Iedo Bezerra Sá, engenheiro florestal da Embrapa Petrolina, na Bahia. Também será preciso desenvolver novas variedades para o plantio, como o feijão caupi, da Embrapa, que consegue brotar em temperaturas mais elevadas. A empresa também pesquisa novos tipos de arroz e pastagens para garantir a criação de pequenos animais, como as cabras. "Não há receita de bolo, mas é possível salvar o semi-árido da desertificação", diz Bezerra Sá.
BRANCOS E FRACOS
Corais do Caribe ficaram doentes pela temperatura elevada da água. Isso
também aconteceu em nosso litoral

A DESTRUIÇÃO DA LAVOURA

Os impactos na agricultura nacional são as conseqüências mais alarmantes do aquecimento global. Em um cenário de aumento de temperatura de até 5 graus, a produção agrícola brasileira perderia mais da metade de sua área cultivável. Lavouras como o café desapareceriam do território nacional. A capacidade de alimentar a população ficaria comprometida. Um cenário intermediário, de aumento de até 3 graus na temperatura regional, é o mais provável, segundo o pesquisador da Embrapa Eduardo Assad. Nesse caso, o país perderia muitas áreas cultiváveis. A da soja seria reduzida dos atuais 3,3 milhões de quilômetros quadrados para 2,2 milhões. O plantio ficaria restrito a algumas áreas na Amazônia, para o temor dos ambientalistas que lutam para defender a floresta.

O QUE FAZER

Uma das chances para reverter esse cenário são as variedades de plantas adaptadas às mudanças climáticas. "Com o melhoramento genético, podemos garantir que não ocorram grandes alterações na área plantada", afirma Assad. Essa adaptação acontece por meio do cruzamento das espécies comerciais, como a soja, com plantas do cerrado, escolhidas por serem resistentes a extremos de calor e seca. "O cerrado é a esperança de salvação para o agronegócio", diz. "Precisamos preservar esse ecossistema para buscar plantas nativas que vão garantir a agricultura." O cerrado, no entanto, é hoje a área mais visada para a expansão da soja e dos canaviais. Dois terços de sua vegetação original já desapareceram. O esforço de preservação tem de começar logo.

O FIM DA PESCA

A pesca é a atividade humana de busca por proteína mais antiga da humanidade. Talvez não tenha muito futuro. Pesquisas demonstram que restarão poucos pescadores depois das mudanças climáticas. Muitas das espécies de peixes de águas doces e do mar que consumimos correm o risco de ser extintas. Pior: há pouca disponibilidade de espécies criadas em cativeiro. No total, menos de 10% dos peixes ingeridos no mundo são de criadouros.
Nos oceanos, o problema parece ser maior. Os ambientes já pressionados pela poluição e pesca descontrolada devem sofrer. Uma das ameaças é a destruição dos mangues, passíveis de ser alagados pela elevação do nível do mar, e dos corais, que seriam destruídos por uma mudança de acidez da água (provocada porque o mar absorve parte do carbono da atmosfera). Ambos funcionam como berçários naturais, que garantem a reposição dos estoques pesqueiros. Um estudo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) afirma que espécies de peixes migratórios e de alto-mar também podem ser extintas.
Uma amostra do que pode vir por aí aconteceu em Abrolhos, na Bahia. Em 1998, durante uma onda de calor, houve um branqueamento de 85% dos corais. No branqueamento, os organismos que mantêm o coral vivo (e colorido) morrem, deixando apenas a estrutura calcárea, branca. "Foi um grande susto", diz Guilherme Dutra, biólogo da ONG Conservação Internacional. "Com sorte, cerca de 90% desses corais se recuperaram. Mas não sabemos o que pode acontecer caso a temperatura aumente 2 graus." Sem os recifes, muitas espécies de peixes, como os meros e as garoupas, perdem seu hábitat e local de reprodução.

O QUE FAZER

Há poucos levantamentos de quais medidas podem evitar um colapso na pesca. De qualquer forma, a criação em cativeiro não parece ser a solução, porque ela destrói justamente as regiões de mangues e corais.
 
PENDURADO
Caranguejo em um manguezal baiano. A elevação dos mares pode destruir a
vegetação dos mangues e afetar o  berçário de peixes. Além disso, a acidez
da água pode ter impacto no desenvolvimento dos crustáceos

UM EFEITO POSITIVO

Nem todas as previsões são negativas. Com a possibilidade de aumento das chuvas no Sul, podemos ter um crescimento na produção de energia do país. Na região está 40% da capacidade instalada de geração de energia. "Isso pode ser um ponto positivo, apesar de aumentar o sedimento e reduzir o tempo de vida útil das usinas", diz Carlos Tucci, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O incremento pode até compensar as perdas de geração em usinas do Nordeste, como Paulo Afonso, Três Marias e Sobradinho. Ou as perdas no Sudeste, que terá menos chuvas no inverno.
Apesar de todos esses cenários e possíveis soluções, ainda falta muito para o Brasil ter um plano de combate ao aquecimento global. No início do mês, uma articulação encabeçada pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, começou a debater a questão com a Presidência da República. "Precisamos criar um plano nacional para o aquecimento global, pois os efeitos vão além da esfera ambiental e passam pela econômica e social", afirmou Marina. Agora, ela circula de ministério em ministério, tentando alertar o alto escalão para a gravidade da questão. Apesar do esforço da ministra, o governo federal ainda não acenou com datas para iniciar alguma ação.
Para alguns cientistas, organizar ações e projetos de controle das mudanças climáticas pode ser uma grande chance para o país. Mesmo diante de todas as previsões catastróficas, muitos pesquisadores são otimistas: acreditam nas possibilidades brasileiras de aproveitar nossos recursos naturais para ajudar os países industrializados a reduzir - ou compensar - suas emissões poluentes. Esses países são os responsáveis por mais de 70% das emissões de gases que aquecem o planeta. E estão comprometidos na Convenção Mundial do Clima, da ONU, a reduzir suas emissões. Hoje, pelo Protocolo de Kyoto, os países signatários devem reduzir suas emissões em 5%. A partir de 2012, as metas devem ser revistas. Podem chegar a 50% de redução.
Isso cria oportunidades para o Brasil. Uma delas é propor que os países desenvolvidos paguem pela conservação das florestas tropicais. A outra seria vender cotas em projetos que capturam os gases poluidores. São os mecanismos de desenvolvimento limpo (MDLs). Os projetos envolvem ações como captura de metano dos lixões, reflorestamento e técnicas agrícolas de consórcio entre pasto e lavoura. Para alguns, é uma nova oportunidade de melhorar nossa economia. Desta vez, preservando nossos recursos naturais. "Já perdemos o bonde da História em relação à industrialização, ao crescimento econômico e à educação", diz Carlos Nobre, do Inpe. "Agora, temos elementos suficientes - florestas, combustíveis renováveis e energia limpa - para nos tornar uma potência em serviços ambientais." Seria uma chance inédita de crescer sem destruir nossa riqueza natural.

OS DESAFIOS ATÉ 2100

O que o aquecimento global poderá fazer com o país nos próximos 93 anos


Se nada for feito, a geografia do brasil poderá ter mudanças drásticas até o fim do século, segundo estudos recentes que apontam os possíveis impactos de um aumento de temperatura entre 2 e 5 graus Celsius no país. As ameaças mais graves são danos à agricultura, o desaparecimento de boa parte dos cardumes de nossa costa e a desertificação do Nordeste. Além disso, o litoral das regiões Sul e Sudeste poderia entrar na rota de furacões.
1 - A Amazônia pela metade
• A região oriental da floresta, mais vulnerável a mudanças climáticas, poderá secar. A grande savana da Venezuela formaria um corredor com o Planalto Central brasileiro - o que afetaria o regime de chuvas nas regiões Sul e Sudeste
• A área remanescente poderá ter menos espécies de árvores, de tronco mais fino
• Entre 60% e 70% da floresta de hoje poderá virar uma vegetação com árvores menores e menos diversidade, como uma mata de capoeira
2 - Um deserto no Nordeste
• Os depósitos de água subterrâneos, que alimentam poços na região do semi-árido, poderão secar. Uma área de 900.000 quilômetros, 15,7% do território nacional, poderá virar um deserto
• Cerca de 32 milhões de pessoas do agreste do Nordeste e de Minas Gerais poderão ter problemas de falta d'água. Isso aumentaria a migração para as cidades do litoral nordestino e do Sudeste
• Com menos chuvas, as hidrelétricas gerariam menos energia
3 - O fim do milagre da soja
• A escassez de chuvas deverá prejudicar a produção de grãos no cerrado
• A área plantável de soja (foto) seria reduzida em até 60%, mesmo com a irrigação. O aquecimento também favorece o aumento das pragas, como a ferrugem asiática
• Extensos períodos de seca e pouca chuva afetam os ciclos das águas no Pantanal. Espécies como o tuiuiú e a arara-azul poderão sumir
4 - O litoral mais pobre
• O aumento da acidez na água dos oceanos é uma ameaça às espécies que formam conchas, como as ostras. Também afetará crustáceos, como camarões, caranguejos e lagostas
• 80% das espécies migratórias, como tartarugas e baleias (foto), poderão ser extintas por alterações nas correntes marítimas, redução da oferta de alimentos e desaparecimento de praias
• Deverá haver extinção de 90% das espécies comerciais dos mares. Espécies como atum e salmão são as primeiras na lista de extinção. Outras, como a garoupa, sofrerão com a destruição de manguezais e corais, importantes no ciclo de reprodução r
5 - Mais chuvas e tempestades
• Com o aumento do calor, o Sudeste deverá ficar inadequado para o plantio de café e frutas como maçã e pêssego
• A quantidade de água que cai no Sudeste não vai diminuir. Mas as precipitações deverão se concentrar em períodos menores. Haveria grandes temporais e períodos de seca irregulares
• Cerca de 60% do que restou da Mata Atlântica deverá desaparecer
6 - Furacões nas grandes cidades
• Rio de Janeiro e Recife deverão ser as cidades mais afetadas pela elevação do nível do mar. Erosões na costa litorânea poderão afetar cerca de 42 milhões de pessoas
• O aumento da temperatura no Oceano Atlântico poderá trazer ciclones extratropicais ao litoral do Sul e Sudeste, inclusive São Paulo e Rio de Janeiro. Furacões como o Catarina, que assolou Santa Catarina em 2004, poderão se tornar comuns nessas regiões
• A garoa paulistana deverá acabar
• Os refugiados da Amazônia e do semi-árido também deverão levar doenças endêmicas para os centros urbanos. As doenças causadas pela água contaminada, como a leptospirose, poderão aumentar com as enxurradas

Fontes: Unicamp, Embrapa, UFRJ, Fiocruz, Ipam, WWF, USP, Agência Nacional de Águas, Ministério do Meio Ambiente, Inpe, Hadley Center e IPCC

Fonte: Revista Época - 09/04/2008 - Edição nº 463
Autora: Juliana Arini

01 agosto, 2010

Infra-estrutura a serviço do grande capital

Infra-estrutura a serviço do grande capital

Com as bênçãos de Washington e o apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), dez países sul-americanos vêm levando adiante a um conjunto de obras gigantescas, voltadas para ajustar as economias da região aos interesses do mercado globalizado e das empresas transnacionais

Quem reduz o cenário político da América do Sul ao contraste entre um pólo esquerdista (Venezuela, Bolívia e Equador) e um conservador (Colômbia, Peru, Paraguai), separados por uma zona cinzenta de posições intermediárias (Brasil, Argentina, Chile, Uruguai), deveria rever esse mapa ideológico simplista, comum à maioria das análises, a partir do avanço silencioso de uma iniciativa que transcende as clivagens entre os governos. Com as bênçãos de Washington e apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), os dez países sul-americanos citados [1] vêm levando adiante a implementação de um conjunto de obras gigantescas, voltadas para ajustar as economias da região aos interesses do mercado globalizado e das grandes empresas - locais ou multinacionais. Desde de 2000, quando foi criada, a Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), um megaprojeto que engloba transportes, energia e comunicações, tem implementado uma estratégia que viabiliza a inserção da América do Sul na economia globalizada de modo absolutamente coerente com a lógica neoliberal. A região é encarada como fornecedora de produtos agrícolas, matérias-primas e recursos energéticos para os centros dinâmicos do capitalismo.
De acordo com a página da IIRSA na internet, seu objetivo é "promover o desenvolvimento da infra-estrutura com base em uma visão regional, procurando a integração física dos países da América do Sul e a conquista de um padrão de desenvolvimento territorial eqüitativo e sustentável". A iniciativa prevê a execução de 348 obras em vinte anos, num investimento de aproximadamente 38 bilhões de dólares. Esses projetos, dos quais 31 são considerados de curto prazo, se articulam ao redor de 12 "eixos de integração" que abarcam todo o território sul-americano e, em vários casos, apresentam superposições e interconexões.
Os "eixos" são, na essência, corredores destinados a facilitar a exportação de bens primários para os mercados dos países desenvolvidos. O Eixo Amazônico, um dos mais importantes, se destina a ligar portos no Pacífico - Paita, no Peru; Esmeraldas, no Equador; e Tumaco, na Colômbia - com o Atlântico, na foz do Rio Amazonas, em Belém. Por esse corredor passariam produtos andinos (principalmente, minérios) rumo à Europa, e, no sentido oposto, produtos amazônicos, como carne e madeira, em direção ao mercados da Ásia e da América do Norte.
O Eixo Interoceânico Central, que envolve territórios do Brasil, Bolívia e Peru, deverá reduzir enormemente os custos de transporte do agronegócio brasileiro em suas exportações pelo Pacífico. Este é um objetivo central de duas das mais polêmicas entre as obras previstas: o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, (que inclui, além de três represas, uma hidrovia) e a Rodovia Interoceânica, de 2.586 quilômetros em território peruano, atravessando os Andes. O pacote da IIRSA também inclui, em outros de seus "eixos", uma rede de gasodutos destinada a integrar as reservas de gás da Bolívia e do Peru ao mercado internacional e a Hidrovia Paraná-Paraguai, que pretende ligar, através de 3.442 km de rios navegáveis, o porto fluvial de Cáceres, no Mato Grosso, com Buenos Aires, no Atlântico, oferecendo mais uma saída para a soja e demais commodities da região.
O IIRSA surgiu como uma iniciativa do BID, em agosto de 2000, em parceria com a Corporação Andina de Fomento (CAF) e o Fundo para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata). O então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso foi o anfitrião do encontro fundador, em Brasília, que contou com a adesão de todos os países sul-americanos, exceto a Guiana Francesa. Desde então, muita coisa mudou no cenário político regional, mas a iniciativa segue adiante, com o apoio de todos os governos participantes - e, o que é muito significativo, sem sofrer questionamentos sérios dos presidentes identificados com plataformas de esquerda. Quem tem criticado esse ambicioso esquema de integração física são os movimentos sociais, cientistas e entidades não-governamentais ligados à defesa do meio ambiente. As críticas se referem tanto ao impacto social, econômico e ambiental dos projetos, traçados sem levar em conta as necessidades das populações afetada pelas obras, quanto à própria estratégia que permeia toda a iniciativa.
Na visão dos opositores da IIRSA, o empreendimento se insere na mesma lógica neoliberal que se expressou nas privatizações e na abertura comercial das duas últimas décadas. Eles acreditam que essas obras aumentarão a dependência da América do Sul em relação às nações ricas, agravarão os desequilíbrios entre os países da região e no interior de cada um deles e, nesse processo, acelerarão o esgotamento de recursos naturais valiosos, em prejuízo das gerações futuras. Há também descontentamento com a hegemonia de grupos empresariais brasileiros, em especial o agronegócio e as grandes construtoras, os setores que mais têm a ganhar com o empreendimento.
Os críticos chamam a atenção, logo de saída, para o flagrante descaso com relação aos efeitos nefastos sobre as comunidades ribeirinhas, os indígenas e os camponeses das regiões onde se situam as obras. "Os modelos de integração até agora propostos desconsideram as identidades das populações locais, suas culturas e seus territórios", assinala Magnólia Said, presidente do Centro de Pesquisa e Assessoria (Esplar), de Fortaleza. Em vez de serem consultados, prossegue ela, os moradores são compelidos a "integrar-se a uma ordem de desenvolvimento na qual os únicos interesses que irão continuar valendo são os interesses do mercado".
A maior parte dos projetos da IIRSA se situa em regiões de rica biodiversidade, ecossistemas frágeis e populações altamente vulneráveis a alterações ambientais. Por mais que as obras se anunciem como "sustentáveis", o impacto ambiental é inegável e, em alguns casos, devastador. As hidrovias e as represas alteram o regime de águas dos rios, afetando a pesca e ameaçando de extinção um grande número de espécies aquáticas. As estradas provocam, inevitavelmente, o desmatamento de áreas que vão muito além de suas margens, sem falar em efeitos colaterais como a imigração descontrolada e a poluição ambiental. É sintomático, nesse quadro, que a Rodovia Interoceânica tenha sido aprovada, financiada e esteja sendo construída, desde 2006, sem a realização de estudo prévio de impacto ambiental. De acordo com uma pesquisa do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil Peruana, a região - uma das áreas mais ricas em biodiversidade e, até recentemente, em bom estado de preservação - enfrentará, em 10 anos, todas as mazelas que quase sempre acompanham a instalação de rodovias [2]. Com um agravante: a estrada atravessará uma área onde vivem diversos grupos indígenas em situação de isolamento voluntário, que serão especialmente afetados pela degradação do entorno.
Na linguagem tecnocrática dos planejadores envolvidos na IIRSA, os acidentes geográficos, como a cordilheira dos Andes e a floresta amazônica, são encarados como "barreiras", empecilhos a serem "superados" em nome do progresso. Os recursos naturais, por sua vez, se transformam em "estoques", reservatórios de commodities a serem negociadas no mercado de futuros. "Para se viabilizar - afirma Magnólia - esses projetos vão demandar o desaparecimento de tudo o que é considerado obstáculo: árvores seculares, pequenas cidades, reservas indígenas, comunidades quilombolas, práticas agrícolas consorciadas e traços culturais. Ao mesmo tempo, a exclusão social permanece intocada".
Na Amazônia brasileira, que tem seu território incluído em quatro dos "eixos de integração", a influência das obras se estenderá por 2,5 milhões de hectares, atingindo 107 terras indígenas, cujos residentes representam 22% da população indígena brasileira. Outras 484 áreas prioritárias para a conservação de biodiversidade também seriam afetadas. O título de um recente estudo da organização não-governamental Conservação Internacional dá idéia do que está em jogo: "Uma tempestade perfeita na selva amazônica: desenvolvimento e conservação no contexto da IIRSA" [3]. Seu autor, o cientista norte-americano Tim Killeen, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica, avaliou o impacto dos novos projetos de transporte, energia e telecomunicações e conclui que eles poderão destruir grande parte da floresta tropical amazônica nas próximas décadas.
Killeen relaciona as obras previstas na IIRSA ao crescimento das pressões sobre o ecossistema amazônico e suas comunidades tradicionais. Entre essas pressões encontram-se a exploração madeireira e o desflorestamento - problemas associados à expansão descontrolada da agricultura, à criação de gado e à exploração mineral, bem como ao rápido crescimento dos cultivos para biocombustíveis, tais como a cana-de-açúcar. "A falta de percepção do pleno impacto dos investimentos da IIRSA, especialmente no contexto da mudança climática e de mercados globais, poderá produzir uma tempestade perfeita de destruição ambiental", escreveu Killeen. "A maior área de floresta tropical do planeta e os múltiplos benefícios que ela proporciona estão ameaçados".
O desafio, segundo o pesquisador, é o de conciliar as expectativas legítimas de desenvolvimento com a necessidade de conservar o ecossistema amazônico. Mas essa preocupação, que deveria estar no centro do processo de decisões da IIRSA, manifesta-se de forma superficial. A sustentabilidade ambiental e social é encarada, no fundo, como uma questão de relações públicas (como "vender" o projeto à opinião pública) e de gestão de conflitos (como contornar as eventuais resistências da sociedade civil). Cifras grandiosas emolduram a retórica desenvolvimentista dos arautos da IIRSA: megawatts de eletricidade, milhares de quilômetros de estradas, juntamente com uma mapa todo recortado por rotas que o discurso oficial alardeia como vetores de progresso. Já o impacto ambiental é encarado sempre de uma forma pontual, no âmbito restrito de cada obra, como aponta a Conservação Internacional. "A estratégia de implementação [da IIRSA] é completamente fragmentada, dificultando a percepção de seus impactos econômicos, sociais, culturais e ambientais", afirma o estudo da entidade.
Em certos casos, a fragmentação ocorre dentro do próprio projeto, o que dificulta a avaliação do impacto social e ambiental, como ocorreu com os estudos sobre o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira [4]. A hidrovia projetada tornará mais barato o custo de transporte da soja e estimulará um aumento dramático na produção, aumentando a pressão sobre a floresta amazônica, mas isso não é levado em conta nas projeções de impacto ambiental. A Conservação Internacional alerta que a ampliação da infra-estrutura em regiões como a Amazônia, em que a capacidade de atuação do Estado é precária, costuma trazer consigo efeitos incontroláveis como a imigração de populações em situação de miséria, o agravamento das deficiências em educação, saúde, moradia e saneamento, a perda da qualidade da água, o aumento indiscriminado da coleta e da caça para a sobrevivência, a ampliação das áreas desmatadas, a grilagem de terras, as doenças contagiosas, a criminalidade e a prostituição. Nada disso figura nos relatórios oficiais, sempre otimistas, encaminhados às agências de financiamento.
O déficit de democracia na IIRSA é gritante. Regra geral, os projetos já são anunciados como fatos consumados. O debate se restringe, então, às maneiras de se adaptar a algo apresentado como irreversível, movido por forças acima da vontade humana. Em muitos casos, a população nem mesmo é informada sobre as conseqüências das obras que estão sendo planejadas. Um exemplo da falta de transparência é o da usina hidrelétrica do Garabí, na bacia do Rio Uruguai, maior obra da IIRSA em área de Mata Atlântica. O projeto original, que afetará fortemente a biodiversidade em terras situadas no Brasil, Uruguai e Argentina, foi interrompido no início da década de 1990 diante da forte oposição das populações ribeirinhas, de entidades ambientalistas e do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Naquela ocasião, a previsão era de um impacto ambiental catastrófico, com a destruição de várias cachoeiras e a inundação uma enorme área nos três países, inclusive no Parque Estadual do Turvo, no Rio Grande do Sul. Em 2005, o projeto foi retomado, mas as discussões têm acontecido a portas fechadas, apenas com representantes dos governos e das empresas construtoras. O presidente Lula, em seu recente encontro com a chefe de Estado argentina Cristina Kirchner, em 22 de fevereiro, anunciou a retomada das obras, e a população local permanece sem saber dos riscos a que será submetida.
No eterno impasse entre crescimento econômico e proteção ambiental, a pergunta que raramente vem à tona se refere aos verdadeiros interesses existentes por trás desses planos faraônicos de infra-estrutura. A quem servirá a energia a ser produzida? Quem vai lucrar com o transporte de mercadorias pelos rios que se tornarão navegáveis? Qual é a estratégia que move esses empreendimentos? Para o sociólogo Luiz Fernando Novoa, da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, a IIRSA se rege pelos interesses das grandes empresas, principalmente norte-americanas e, em segundo lugar, brasileiras, que passarão a controlar os recursos naturais da América do Sul numa escala sem precedentes. "Os projetos são voltados para a competitividade externa da região e não para gerar interdependência entre seus países", afirma Novoa. "Há uma hierarquia de prioridades que não corresponde aos interesses de nossas populações".
A lógica da IIRSA, segundo Novoa, é a da criação de verdadeiros "territórios empresariais", desvinculados das trajetórias, da cultura e da dinâmica interna dos povos. "A governança que os grandes conglomerados empresariais pretendem estabelecer é a que proporciona capacidade de administração meticulosa da expansão das fronteiras dos negócios", afirma. "O Estado nacional, a população e o meio ambiente ficam à mercê dos investimentos privados, à disposição de seus requerimentos e de suas condicionalidades. E assim nos transformamos em estrangeiros em nossos próprios países."
O que ocorre no setor de produção de eletricidade é ilustrativo. "A demanda crescente por energia está diretamente relacionada à expansão da produção de bens eletrointensivos, como o alumínio e a celulose", aponta Elisângela Soldatelli Paim, coordenadora de projetos do Núcleo Amigos da Terra Brasil, de Porto Alegre. A represa de Tucuruí, construída na década de 1970 às custas de uma imensa devastação ambiental e da expulsão de mais de 20 mil pessoas, serve essencialmente a três grandes fábricas de alumínio, ali instaladas devido às reservas de bauxita do Pará. Uma delas é norte-americana e outras duas pertencem à Companhia Vale do Rio Doce, em sociedade com capitais japoneses. A União subsidia a energia que abastece essas três empresas, mas os moradores deslocados, além de não terem recebido indenização, não têm eletricidade nas suas casas. A produção de alumínio é feita de um modo predatório, que conduz à rápida exaustão das reservas minerais, num esquema típico das chamadas "economias de enclave". A geração de empregos é reduzida. Grande parte do alumínio produzido segue para os Estados Unidos, o Japão e a China, enquanto os danos sócio-ambientais do empreendimento - as "externalidades", em tecnocratês - são absorvidos localmente.
A IIRSA, com sua ênfase na remoção dos entraves à circulação de mercadorias e à exploração dos recursos naturais, segue uma estratégia compatível com os objetivos da Alca (Área de Livre-Comércio das Américas), defendida pelo governo norte-americano. Os Estados Unidos, não por acaso, estão impulsionando uma iniciativa de moldes semelhantes, o Plano Puebla-Panamá (PPP), projeto similar ao da IIRSA e que tem como objetivo "integrar" sete países da América Central e o sul do México [5]. Encarados em conjunto, os dois megaprojetos se encaixam perfeitamente, configurando um espaço latino-americano totalmente adequado aos objetivos do máximo aproveitamento dos recursos naturais e humanos em benefício do capital privado.
Nesse contexto, os opositores da IIRSA têm manifestado estranheza diante do apoio que a iniciativa tem recebido dos governos esquerdistas da região. A Venezuela de Hugo Chávez, ao mesmo tempo em que destoa do modelo integracionista neoliberal com iniciativas como a Alba, a Telesur e o Banco do Sul, não apenas participa da IIRSA, com vários empreendimentos em seu território, como propõe a construção do Gasoduto do Sul. Trata-se de uma obra faraônica que, estendendo-se do Caribe à Argentina, cortará a floresta amazônica do mesmo modo que as empreitadas mais agressivas da IIRSA, afetando o meio ambiente e pondo em risco o modo de vida de populações locais. Os presidentes Evo Morales, da Bolívia, e Rafael Correa, do Equador, fizeram declarações, em dezembro de 2006, durante a Cúpula Social de Cochabamba, de que a IIRSA deve ser "reorientada" a fim de corresponder aos interesses dos povos. No entanto, a Bolívia e o Equador estão comprometidos com vários projetos do IIRSA - e nem todos eles atendem a critérios sociais e ambientais aceitáveis. O governo de Morales chegou a opor resistência ao Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira em razão dos impactos que essa obra provocará no lado boliviano, mas mudou de posição diante da perspectiva de obter apoio brasileiro para outros projetos. "Esses governos ainda estão presos a um ?desenvolvimentismo econômico? predatório em relação aos bens naturais e às populações", avalia Mariângela Soldatelli Paim, do Núcleo Amigos da Terra Brasil. "A questão é que o modelo capitalista neoliberal que depende e resulta na exploração da natureza e dos povos não está sendo combatido nas suas estruturas."
A adesão dos governos "bolivarianos" à IIRSA deixa no ar uma pergunta: existe alternativa? O sociólogo Luiz Fernando Novoa acredita que sim. "Ao criticar a IIRSA não estamos dizendo que não é necessário construir rodovias, ferrovias, hidrovias, portos e aeroportos, ou investir no setor elétrico e nas telecomunicações", esclarece. O que ele propõe - refletindo, em grande medida, um consenso entre os opositores do modelo neoliberal de integração - é uma mudança no foco dos projetos de infra-estrutura, de modo a priorizar os mercados internos e o desenvolvimento social. "A geração e a distribuição de energia no continente deve ser pensada em função do incremento do dinamismo econômico regional, e não em função das necessidades de suprimento de cadeias transnacionais de produção", exemplifica.
Igualmente, do seu ponto de vista, a "interligação

Fonte: Le Monde Brasil
Autor: Igor Fuser é jornalista, professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e integrante da redação da revista Caros Amigos.
[1] Integram ainda a IIRSA a Guiana e o Suriname.
[2] Marc Dourojeanni, "A Estrada Interoceânica no Peru", em O Eco, 30/6/2006.
[3] "IIRSA pode colocar em risco floresta amazônica", em Conservação Internacional Notícias, 1/10/2007.
[4] Telma Delgado Monteiro, "Hidrelétricas do rio Madeira", em amazonia.org.br, 6/2/2006.
[5] Igor Ojeda e Luis Brasiliano, "As veias cada vez mais abertas da América Latina", Brasil de Fato, 7/2/2008.