02 fevereiro, 2011

Egito: uma ditadura à beira da morte

Egito: uma ditadura à beira da morte

Os tanques egípcios, os manifestantes em delírio sentados sobre eles, as bandeiras, as 40 mil pessoas lacrimejando, gritando vivas na Praça da Liberdade e um membro da Fraternidade Muçulmana rezando à volta dos tanques, sentado entre seus ocupantes. Pode-se, talvez, comparar à libertação de Bucareste? Subi eu também sobre um tanque de combate, e só conseguia pensar naqueles maravilhosos filmes da libertação de Paris. A apenas algumas centenas de metros dali, os guardas da segurança de Mubarak, nos uniformes pretos, ainda atiravam contra manifestantes perto do ministério do Interior. Foi celebração selvagem de vitória histórica, os tanques de Mubarak libertando a capital de sua própria ditadura.
No mundo de pantomima de Mubarak – e de Barack Obama e Hillary Clinton em Washington –, o homem que ainda se diz presidente do Egito deu posse a um vice-presidente cuja escolha não poderia ter sido pior, na tentativa de aplacar a fúria dos manifestantes – Omar Suleiman, chefe-negociador do Egito com Israel e principal agente da inteligência egípcia, 75 anos de idade e muitos de contatos com Tel-aviv e Jerusalém, além de quatro ataques cardíacos. Não se sabe de que modo esse velho apparatchik doente conseguiria enfrentar a fúria e a alegria de 80 milhões de egípcios que se vão livrando de Mubarak. Quando falei a alguns manifestantes ao meu lado sobre o tanque, da nomeação e posse de Suleiman, houve gargalhadas.
Os soldados que conduzem os tanques, em uniforme de combate, sorridentes e às vezes aplaudindo os passantes não fizeram qualquer esforço para apagar das laterais dos tanques os graffiti ali pintados com tinta spray. "Fora Mubarak! Caia fora, Mubarak!" e "Mubarak, seu governo acabou" aparecem grafitados em praticamente todos os tanques que se veem pelas ruas do Cairo. Sobre um dos tanques que circulavam pela Praça da Liberdade, vi um alto dirigente da Fraternidade Muçulmana, Mohamed Beltagi. Antes, andei ao lado de um comboio de tanques próximo de Garden City, subúrbio do Cairo, onde as multidões subiram aos tanques para oferecer laranjas aos soldados, aplaudindo-os como patriotas egípcios.
A nomeação ensandecida e sem sentido de um vice-presidente (o primeiro, em 30 anos, e nomeação que significa que Mubarak desistiu de nomear o filho para substituí-lo no poder) e a formação de um ‘novo’ Gabinete sem poder algum, constituído só de velhos conhecidos dos egípcios, evidenciam que as ruas do Cairo viram e veem o que nem os estrategistas e políticos dos EUA e da União Europeia souberam ver: que o tempo de Mubarak acabou.
As frágeis ameaças de Mubarak de que empregará repressão violenta em nome do bem estar dos egípcios – quando já se sabe que a sua própria polícia e suas milícias são responsáveis pelos ataques mais violentos dos últimos cinco dias – só geraram ainda mais fúria entre os manifestantes, vítimas de 30 anos de ditadura várias vezes muito violenta. Crescem as suspeitas de que os piores ataques da repressão foram executados por milícias não uniformizadas – inclusive o assassinato de 11 homens numa vila do interior do país nas últimas 24 horas –, tentativa de dividir o movimento e criar suspeitas contra as intenções democratizantes das manifestações contra o governo de Mubarak. A destruição dos centros de comunicações por grupos de homens mascarados – que se suspeita que tenha sido ordenada por alguma agência da segurança de Mubarak – também parece ter sido obra das milícias não uniformizadas que espancaram manifestantes.
Mas o incêndio de postos policiais no Cairo, Alexandria, Suez e outras cidades não foram obra daquelas milícias. No final da sexta-feira, a 40 milhas do Cairo, na estrada para Alexandria, havia grandes grupos de jovens em torno de fogueiras acesas no meio da estrada e, quando os carros paravam, eram assaltados; os assaltantes exigiam dólares, sempre muitos, em dinheiro. Ontem pela manhã, homens armados roubavam carros, de dentro dos quais arrancavam motoristas e passageiros, no centro do Cairo.
Infinitamente mais terrível foi o vandalismo contra o Museu Nacional do Egito. Depois que a polícia abandonou o serviço de segurança do museu, houve invasão de saqueadores e vândalos, que roubaram ou destruíram peças de 4 mil anos, múmias e peças de madeira esculpida de valor inestimável – barcos, esculpidos com todos os detalhes e a tripulação, miniaturas magníficas, feitas para acompanhar os faraós na viagem pós-morte. Vitrines que protegiam trajes milenares foram quebradas, os guardas pintados de preto arrancados e depredados. Outra vez, é preciso registrar que há boatos de que os próprios policiais destruíram o museu, antes de fugir na 6ª-feira à noite. Lembrança fantasmagórica do museu de Bagdá em 2003. Bagdá foi pior, a destruição foi mais total, mas mesmo assim foi terrível o desastre do museu do Cairo.
Em minha jornada noturna da cidade 6 de Outubro até a capital tive de diminuir a velocidade várias vezes, porque a estrada está cheia de restos de veículos queimados.
Havia destroços e vidros quebrados pela estrada, e muitos policiais armados, com rifles apontados para os faróis do meu carro. Vi um jipe semidestruído. Os restos do equipamento da polícia antitumulto que os manifestantes expulsaram da cidade do Cairo na sexta-feira. Os mesmos manifestantes que sábado, 29/01, formavam círculo gigantesco em torno da Praça da Liberdade para rezar. Gritos de "Allah Alakbar" trovejavam pela cidade no ar da noite.
Há também quem clame por vingança. Uma equipe de jornalistas da rede al-Jazeera encontrou 23 cadáveres em Alexandria, aparentemente assassinados pela polícia. Vários tinham os rostos horrivelmente mutilados. Outros onze cadáveres foram encontrados no Cairo, cercados por parentes que gritavam por vingança contra a polícia.
No momento, Cairo salta em minutos da alegria para a mais terrível fúria. Neste sábado, andei pela ponte do rio Nilo e vi as ruínas do prédio de 15 andares onde funcionava a sede do partido de Mubarak, que foi incendiado. À frente, um imenso cartaz pregava os benefícios que o partido trouxe ao Egito – imagens de estudantes formados bem sucedidos, médicos e pleno emprego, promessas que o governo de Mubarak sempre repetiu e jamais cumpriu em 30 anos – emoldurados pela fuligem, semiqueimados, pendentes das janelas enegrecidas do prédio. Milhares de egípcios andavam pela ponte e pelos acessos laterais para fotografar o prédio ainda fumegante – e muitos saqueadores, a maioria velhos, que tiravam de lá mesas e cadeiras.
No instante em que uma equipe de televisão escocesa preparava-se para filmar as mesmas cenas, foi cercada por várias pessoas que disseram que não tinham o direito de filmar os incêndios, que os egípcios são povo orgulhoso, que não roubaria nem saquearia. O assunto foi discutido várias vezes ao longo do dia: se a imprensa teria ou não o direito de divulgar imagens sobre essa "libertação", que veiculassem ideias menos dignas do movimento. Mesmo assim, os manifestantes mantinham-se cordiais e – apesar das declarações acovardadas de Obama, na sexta-feira à noite – não se viu nenhum nem qualquer mínimo sinal de hostilidade contra os EUA. "Tudo que queremos, tudo, exclusivamente, é que Mubarak se vá daqui, que haja eleições que nos devolvam a liberdade e a honra", disse-me uma psiquiatra de 30 anos. Por trás dela, multidões de jovens limpavam o leito da rua, removendo restos de veículos e barreiras postas nas intersecções e esquinas – releitura irônica do conhecido ditado egípcio, de que os egípcios nunca varrerão as próprias ruas.
A alegação de Mubarak, de que as atuais demonstrações e atos de delinqüência – a combinação foi tema do discurso em que Mubarak declarou que não deixaria o Egito – seriam parte de um "plano sinistro" é evidentemente o núcleo de seu argumento, na tentativa de não perder o reconhecimento mundial.
De fato, a própria resposta de Obama – sobre a necessidade de reformas e o fim da violência – foi cópia exata de todas as mentiras que Mubarak sempre usou para defender seu governo durante 30 anos. Os egípcios riram de Obama – inclusive no Cairo, depois de eleito – quando exigiu que os árabes abraçassem a liberdade e a democracia. Mas até essas aspirações sumiram completamente quando, na sexta-feira, Obama assegurou seu desconfortável e incomodado apoio ao presidente egípcio. O problema é o de sempre: as linhas do poder e as linhas da moralidade em Washington jamais convergem quando os presidentes dos EUA têm de lidar com o Oriente Médio. A liderança moral dos EUA cessa de existir quando há confronto declarado entre o mundo árabe e Israel.
E o exército egípcio, desnecessário lembrar, é parte da equação. Recebe de Washington mais de 1,3 bilhão de dólares de auxílio anual. O comandante desse exército, general Tantawi – que casualmente estava em Washington quando a polícia tentava esmagar os manifestantes – sempre foi muito amigo, pessoal, íntimo, de Mubarak. Não é bom sinal, parece, pelo menos no futuro imediato.
Assim, a "libertação" do Cairo – onde houve notícias, no final de semana, de saques no hospital Qasr al-Aini – ainda tem que andar, até a consumação. O fim pode ser claro. A tragédia ainda não acabou.

Fonte: Correio da Cidadania - 31-Jan-2011
Autor: Robert Fisk
Publicado originalmente no The Independent.
Tradução: Vila Vodu.

Um outro Oriente Médio é possível?

Um outro Oriente Médio é possível?


Os protestos populares na Tunísia, Egito, Iêmen e Jordânia apresentam uma agenda renovada para o Fórum Social Mundial que inicia de 6 de fevereiro em Dakar, Senegal. A aplicação da consigna do FSM aos problemas dessa região coloca a seguinte questão: “Outro Oriente Médio é possível?”. O que está acontecendo no Egito mostra que o castelo das autocracias apoiadas e sustentadas pelos EUA é menos sólido do que parecia. Milhões de jovens, homens e mulheres, estão nas ruas dizendo que é possível, sim. E necessário.

O Fórum Social Mundial 2011 começa dia 6 de fevereiro em Dakar, Senegal. O encontro ganhou uma nova agenda com a onda de protestos populares que já atingiu a Tunísia, o Egito, o Iêmen e a Jordânia. O mais significativo de todos, sem dúvida, é o Egito, em função do que o país representa em termos geopolíticos no Oriente Médio. Egito e Arábia Saudita são dois pilares centrais da aliança EUA-Israel na região. Uma mudança de regime político em um desses dois países pode significar um terremoto político.
Washington, Tel Aviv e alguns outros governos árabes sabem disso, obviamente, e estão com as barbas de molho. Na noite desta terça, o presidente dos EUA, Barack Obama, cobrava de seu até aqui aliado egípcio, Hosni Mubarack, o “início imediato da transição” política no país. Vão-se os anéis para assegurar a permanência dos dedos. A velha história. E os EUA temem o pior. Olham para o Egito, a Árabia Saudita, a Jordânia e a Palestina com indisfarçável pânico.
Quem ouve a voz dos milhões de egípcios que perderam o medo da repressão e foram para as ruas sabe que o pior é a manutenção do atual regime, financiado e armado pelos Estados Unidos há décadas. Enérgico na denúncia e na cobrança por democracia quando se trata de países como o Irã – ou na “implantação da democracia” a ferro e fogo, no caso do Iraque -, os EUA silenciam quando se trata das suas ditaduras amigas no Oriente Médio, especialmente no caso do Egito e da Arábia Saudita. Ou silenciavam, ao menos, já que agora foram obrigados a se manifestar.
Desta vez, os malabarismos linguísticos e semânticos não conseguem esconder a natureza do problema. E a natureza do problema no Egito não reside no fundamentalismo islâmico ou nas aspirações sociais e políticas da Irmandade Muçulmana. O problema reside em um regime autoritário e corrupto, apoiado e sustentado pelos EUA, que governa para um pequeno grupo, deixando milhões de pessoas vivendo na pobreza (cerca de 20% da população vive abaixo da linha da pobreza).
Basta que os líderes ocidentais supostamente defensores da democracia deixem de financiar aqueles que não querem que os povos destes países escolham o seu destino. Deixem a democracia entrar no Oriente Médio. Não é essa a promessa universal do Ocidente? E seja o que Deus quiser. Ou o que Alá quiser!
O povo egípcio não está rua por questões religiosas. Está na rua porque, entre outras coisas, decidiu cobrar as promessas civilizatórias do Ocidente: democracia, liberdade, prosperidade, justiça social. As consequências desses protestos são incertas. Neste exato momento, a turma dos anéis está em campo para tentar salvar os dedos do modelo atual. Mas uma coisa parece definitiva: o povo egípcio perdeu o medo e decidiu mudar os rumos do país. Essa é uma força muito difícil de ser detida e costuma ter um impacto profundo na vida das nações.

Fonte: Agência Carta Maior
Autor: Marco Aurélio Weissheimer

Ultimato a Mubarak

Ultimato a Mubarak


Com o discurso da perda de legitimidade, a oposição quer a queda do presidente e convocação imediata de eleições. Nada de esperar até outubro, ou seja, o calendário oficial.
1. A megamanifestação ocorrida na praça Tharir deu vida ao discurso da perda da legitimação por parte de Hosny Mubarak, presidente que se mantém no cargo há quase 30 anos.
Para os opositores, cerca de 2 milhões de cidadãos egípcios estiveram presentes à praça Tahrir para pedir urgentes reformas políticas e a queda de Mubarak. Como consequência, o presidente Mubarak teria perdido a legitimação, que provém do povo.
No fundo, uma adequação, sem o devido processo, do instituto do “recall”, que vigora nos EUA ( na Califórnia, o cartão vermelho do recall foi aplicado ao antigo governador e se elegeu Arnold Schwarzenegger), Rússia e alguns cantões suíços.
O discurso da perda de legitimidade para continuar a governar o Egito saiu de uma reunião que ocorreu hoje entre os grupos de oposição.
Dessa reunião oposicionista participaram as lideranças do Al-Wafd (liberais democratas), Al Nassi (nacionalistas), Movimento Nacional para Mudanças (progressistas), Fraternidade Muçulmana (adeptos de uma teocracia) e Tajamud (reúne vários grupos de esquerda).
Em entrevista, o líder El-Baradei, já vencedor do Prêmio Nobel da Paz, deu um “ultimatum a Mubarak”: “Deverá deixar o país até sexta-feira para evitar um banho de sangue”.
Segundo estimativa da ONU, o conflito no Egito iniciado na terça 25 resultou, até agora, em 300 mortes. E uma mensagem da Unesco pede proteção urgente aos tesouros egípcios diante de constantes tentativas de saque.

2. O Irã, sem nenhuma sutileza, aproveitou a comemoração de hoje do 32º Aniversário da Revolução Islâmica para reproduzir, em irritantes repetições pela rádio e televisão, o discurso do falecido aiatolá Sayyid Ruhollah Musavi Khomeini.
Em antigo vídeo, Khomeini conclama o Egito a por fim à influência norte-americana: “O povo egípcio deve se rebelar e afastar da região o arrogante global e os seus aliados” (referência aos EUA e governo egípcio).
No Egito, os islâmicos sunitas representam 89% da população. O Irã é xiita, enquanto os al-qaedistas são fundamentalistas sunitas que pretendem unir a todos, mas sob orientação de Osama bin Laden, que se apresenta como o novo califa.

3. A Fraternidade Muçulmana é a principal força político-religiosa e extremista do Egito. A assembléia parlamentar nacional é composta por 454 membros, sendo dez de livre escolha do presidente da República. A Fraternidade Muçulmana detém 88 cadeiras.
Para analistas internacionais, cerca de 20% dos egípcios apóiam a Fraternidade Muçulmana. Para republicanos e direitistas israelenses, os bem organizados membros da Fraternidade Muçulmana poderão vencer a eleição e chegar ao poder, com riscos à paz mundial.
Ontem, o ator Omar Sharif, que é egípcio e vive no Cairo, disse querer a democracia com a substituição de Mubarak. Mas, disse estar temeroso com a minoria radical islâmica. Em outras palavras, teme por um Estado teocrático, como no Irã xiita.
Depois de pegar carona nas manifestações iniciadas na terça 25 por estudantes e trabalhadores desejosos de mais liberdade e democracia, a Fraternidade Muçulmana já começa a fazer exigências. Hoje, expediu comunicado a refutar qualquer diálogo com o vice-presidente Omar Suleiman, que o Exército apóia para conduzir a transição.
PANO RÁPIDO. Com o discurso da perda de legitimidade de Mubarak, a oposição quer a queda do presidente e convocação imediata de eleições. Nada de esperar até outubro, ou seja, o calendário oficial.

Fonte: Carta Capital - 1 de fevereiro de 2011.
Autor: Wálter Maierovitch

31 janeiro, 2011

A Revolução dos Jasmins contra as autocracias.

A Revolução dos Jasmins contra as autocracias.
Entrevista com Sami Naïr

A chamada Revolução dos Jasmins que iniciou na Tunísia há algumas semanas se estendeu como um rastilho de pólvora para vários países árabes, e não os menores. O Iêmen e, sobretudo, o Egito, vivem hoje revoltas que têm características revolucionárias. Trata-se de um fenômeno tanto mais único na medida em que o discurso ocidental sempre tratou os países árabes como incapazes de assumir coletivamente um destino democrático. Tunísia, Argélia, Mauritânia, Iêmen e Egito não só desmentem esses argumentos como também abalam desde a raiz as ditaduras que governam esses países há décadas com mão de ferro e privilégios exorbitantes.
Alguns analistas asseguram hoje que já não se trata de saber que regime cairá primeiro, mas sim qual se salvará dessa onda de aspirações democráticas cujos protagonistas são as classes médias, os setores menos favorecidos e os jovens, que se organizam por meio da internet e das redes sociais. O mais moderno do mundo irrompe como instrumento de comunicação e protesto contra poderes dinossáuricos. Os protestos revelam também a ruptura sem remédio entre autocracias longevas, respaldadas historicamente pelo Ocidente, e a legitimidade popular.
O sociólogo e filósofo Sami Naïr, professor de Ciências Políticas na Universidade Paris VIII, presidente do Instituto Magreb-Europa da mesma Universidade, analisa em entrevista ao jornal Página/12 a originalidade e as causas desta revolução árabe. Autor de ensaios e análises sobre política internacional, Naïr aponta como primeiro fator alimentador da revolta o fato central de que o medo mudou de campo. É o poder que enfrenta agora um povo que perdeu o medo.

A entrevista

A Revolução dos Jasmins se iniciou na Tunísia com a imolação de um jovem e logo se alastrou para outros países. Agora, a revolta chega ao Egito e ao Iêmen. Você dizia em uma análise que, assim como ocorreu primeiro na América Latina e depois nos países do leste europeu, certa parte do mundo árabe está despertando para a história.

Sempre pensei que, ao menos no século XX, o laboratório dos povos foi a América Latina. A Revolução Russa não pode ser entendida sem a Revolução Mexicana. Os latino-americanos inventaram todas as formas de luta possíveis e imagináveis. Na América Latina, se experimentaram as guerrilhas, as lutas políticas, os despotismos, as ditaduras. A partir dos anos 80 e 90, as ditaduras caíram em quase todos os países da América Latina. Esse movimento contra as ditaduras se desenvolveu em outros lugares do mundo, por exemplo, nos países do leste europeu a partir da queda do Muro de Berlim. Agora, esse movimento de fundo que iniciou na América Latina está atingindo todos os países da orla árabe do Mediterrâneo e mesmo além, na península arábica, como está acontecendo no Iêmen.
O problema reside em que, contrariamente ao que ocorreu na América Latina, o movimento que eclodiu nestes países árabes não tem direção, nem organização, nem programa. É um movimento totalmente espontâneo com duas características fundamentais: em primeiro lugar, trata-se de um movimento que destrói definitivamente a ideia de que estas sociedades estão condenadas a viver com o perigo extremista e fundamentalista, por um lado, e, por outro, com a ditadura, que seria uma suposta garantia necessária contra esse perigo fundamentalista. Agora está se demonstrando que o problema é muito mais complexo e que estes países não querem experimentar nem o islamismo nem o fundamentalista, mas sim que, basicamente, desejam a democracia.
O segundo elemento importante, e que pode lembrar o que ocorreu na América Latina, reside no fato de que há uma aliança circunstancial entre as camadas mais pobres e humildes, sem verdadeira inserção social, e as camadas médias empobrecidas nestes últimos anos. Na última década, todos esses países padeceram de um empobrecimento muito importante das classes médias e agora há uma fusão entre esses setores e a base popular, as classes pobres totalmente excluídas do processo de integração dentro da sociedade.

Se essas revoltas forem até o fim nestas autocracias árabes estaríamos vivendo uma autêntica revolução mundial, um giro decisivo na história de nossa concepção dos sistemas políticos mundiais. Sempre se acreditou que os países árabes eram incapazes de assumir uma forma de democracia popular e participativa.

Isso corresponde a um discurso muito depreciativo construído pelos países ocidentais, pelo capitalismo internacional cuja sede é a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), Estados Unidos e União Europeia. Esses atores querem que haja estabilidade nos países árabes e para isso necessitam de regimes fortes e ditatoriais, porque o que importa a eles são duas coisas: em primeiro lugar que essa gente não emigre e, em segundo, que as fontes de recursos petrolíferos sejam garantidas. Por isso desenvolveram esse discurso em total sintonia com os ditadores que sempre repetiram: “nossos povos carecem de maturidade política e cultural e, por conseguinte, não podem ter acesso à democracia”.
Sabemos que tudo isso é falso, que as aspirações democráticas são muito fortes nesta região do mundo. Creio que o que está acontecendo agora demonstra isso de maneira muito clara. Cada situação é específica. Não se pode misturar o que ocorreu na Tunísia, um país que tem uma tradição laica e elites ilustradas muito fortes, com camadas sociais muito coesas, com a situação do Iêmen, onde impera um sistema tribal baseado na dominação despótica de um clã. A única coisa similar é o grau de dominação e a forma de controle, apoiada na polícia e no exército.

A explosão social no Egito tem matizes inéditos. No Egito o exército desempenha um papel central, onde o presidente, Hosni Mubarak, pertence a ele e onde quem está chamado a substituí-lo, seu filho Gamal Mubarak, é um liberal que não é bem visto pelas forças armadas.

O caso egípcio é muito particular, em primeiro lugar porque o país é um velho Estado de direito. Provavelmente seja o Estado de direito mais antigo do mundo. O Estado de direito moderno foi constituído por Mohamed Ali entre o final do século XVIII e início do XIX, ou seja, antes que nós na Europa soubéssemos o que era isso. Mas esse Estado foi destroçado pelos ingleses no século XIX. Em todo o caso, o filho de Mubarak, Gamal, não representa a democracia. Gamal Mubarak é o elemento chave da nomenclatura que domina o país em sua vertente mais liberal. A questão do liberalismo não pode ser concebida unicamente como liberalismo econômico, salvo se se trata de comparar o Egito com a China. Na China temos um despotismo político neocomunista e um liberalismo selvagem que encarna na verdade a dominação de uma elite burocrática. No Egito, é diferente. É impossível que se possa organizar um sistema liberal sem democratização da sociedade. É indispensável evitar que o Egito se transforme em uma república hereditária onde o pai ditador nomeia seu filho como futuro ditador liberal. As pessoas estão buscando outra coisa.
Querem a democratização da sociedade para que a sociedade civil possa escolher por meio de um debate democrático transparente. O filho de Mubarak é como seu pai. As pessoas não o querem porque já tem o exemplo da Síria, onde o filho substituiu o pai e terminou instaurando um sistema mais ou menos liberal, mas com a mesma ditadura.

Você assinala que o que começou a ocorrer na Tunísia e logo se espalhou para outros países é que o medo mudou de lado. O medo acabou.

Isso foi muito importante neste processo. Eu estava na Tunísia quando tudo isso começou e vi como o medo mudava de campo. A revolta tunisiana estourou na localidade de Sidi Bouzid, com a imolação do jovem Mohamed Bouazizi. A partir dali, tudo se transtornou. Até esse momento, o regime tunisiano estava baseado no temor. Mas a morte de Mohamed Bouazizi mudou essa situação, sobretudo pela atitude do então presidente Bem Alí, que foi visitar a família da vítima. As pessoas se deram conta que quem tinha medo era o poder. O mesmo está ocorrendo no Egito. O mais importante nestas revoltas é a vitória do imaginário que significa que transformaram a relação com o poder: agora são os ditadores que devem temer os povos. Isso não significa que amanhã vamos ter uma revolução em todas as partes. Não. O movimento pode avançar, pode recuar, não sabemos o que vai acontecer. Mas o que sabemos, e isso já foi percebido pela população, é que os poderes podem mudar quando os povos querem mudar suas condições de vida e ousam enfrentar o poder para escolher seu próprio destino.
Por isso penso que estamos diante de uma onda que terá desdobramentos. Estamos na mesma história que os povos da América Latina abriram nos anos 80. Logo se seguiram os povos do Leste europeu nos 90 e agora estamos vendo isso acontecer com estes povos árabes. Não podemos esconder que o que está ocorrendo é também uma consequência da globalização. A globalização é má socialmente, mas tem algo bom, que é a globalização dos valores democráticos nas sociedades civis.

Fonte: Carta Capital - 31 de janeiro de 2011.

Por Eduardo Febbro, do Página/12, via Agência Carta Maior
Tradução: Katarina Peixoto

30 novembro, 2010

Energia nuclear iraniana: guerra ou negociações?

Energia nuclear iraniana: guerra ou negociações?

Se chegarem a um acordo sobre local e data, uma conversa entre Rússia, Estados Unidos, Reino Unido, França, China, Alemanha e Irã deve ocorrer em dezembro para discutir o enriquecimento de urânio no país persa. Ao que parece, Paris, Londres e Tel Aviv estão empurrando a administração Obama à intransigência

O governo iraniano, que aceitou a ideia das negociações com o grupo “5+1” (os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha), propôs que a reunião fosse na Turquia. A chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton, intermediária das grandes potências nesse dossiê, reagiu afirmando que esperava “uma proposta oficial do Irã” para determinar o local. Ashton tinha proposto um reencontro em Viena, de 15 a 18 de novembro. A Turquia concordou, em princípio, acolher as negociações interrompidas desde outubro de 2009 e as datas propostas pelo Irã foram o dia 23 de novembro ou 6 de dezembro. (Até o momento, o encontro estava confirmado para o dia 5 de dezembro, mas ainda não haviam chegado a um acordo sobre o local).
O Irã desenvolveu fortes relações com a Turquia, especialmente depois do acordo co-assinado pelos dois países e o Brasil, em maio de 2010. O que previa esse texto? “A princípio, em conformidade com o TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear), o Irã teria direito ao enriquecimento. Para isso, o país aceitaria a troca de 1200 quilos de urânio fracamente enriquecido (UFE) por 120 quilos de urânio enriquecido (UE) à 20%, indispensáveis ao funcionamento de seu reator de pesquisa; e que os 1200 quilos de UFE ficassem estocados na Turquia, até que o Irã recebesse os 120 quilos de UE. E ainda que o Irã enviaria à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), na semana seguinte ao 17 de maio, uma carta oficial formalizando seu acordo. Renunciando uma parte importante do seu urânio, Teerã limitaria seriamente suas capacidades para produzir uma bomba.”
Sabemos que esse acordo foi rejeitado pelos Estados Unidos (que, no entanto, tinham confirmado, por meio de carta enviada ao Brasil, o apoio ao procedimento) e, de maneira ainda mais radical, pela França. Alguns dias mais tarde, em 9 de junho, o Conselho de Segurança da ONU votou novas sanções, apesar da oposição do Brasil e da Turquia. Descontentes com essas medidas, os Estados Unidos e a União Europeia decidiram por sanções unilaterais ao Irã, apesar das críticas da Rússia e da China.
Desde então, por várias vezes, houve tentativas de retomar as negociações e a proposta de Teerã se situa nesse contexto, no momento em que Israel elevou o tom e pediu, através da voz de seu primeiro ministro, “uma ameaça militar credível” contra o Irã. Benjamin Netanyahu fez essa exigência em uma reunião com o vice-presidente americano, Joe Biden, no dia 7 de novembro. “A única maneira de assegurar que o Irã não tenha armas nucleares é brandir uma ameaça credível de ação militar contra o país se ele não parar sua corrida pela bomba atômica.”
Na mesma ocasião, um importante senador, Lindsey Graham, declarou, no Fórum de Hallifax sobre a Segurança Internacional, que toda ação militar contra o Irã deveria incluir não somente suas instalações nucleares, mas também afundar sua marinha, destruir suas forças aéreas e dar golpes severos nos Guardas da Revolução (“Lindsey Graham makes the case for strike on Iran”, The Huffington Post, 6 de novembro). Sobre essa reunião, lemos também Roger Cohen, “An Unknown Soldier” (The New York Times, 8 de novembro), que previne sobre uma nova guerra contra o Oriente Médio: uma operação militar contra o Irã.
O secretário estadunidense de Defesa, Robert Gates, rejeitou as propostas israelenses: “não estou de acordo para dizer que somente uma ameaça militar credível pode convencer o Irã a colocar fim ao seu programa de armas nucleares. (...) Estamos prontos para fazer o que for necessário, mas nesse momento, continuamos acreditando que a abordagem econômica e política que adotamos teve, de fato, um impacto sobre o Irã”. (AFP, 8 de novembro).
Quanto à atitude da França (e do Reino Unido), sua característica é a intransigência, como confirma o artigo do Le Monde do dia 5 de novembro, “energia nuclear iraniana: Paris e Londres se opõem a um projeto de oferta americana”.

Extratos:

“Em uma nova tentativa, de ‘mão estendida’ ao Irã, a administração Obama prepara a partir desse verão uma nova oferta diplomática para tentar resolver o imbróglio nuclear. Essa iniciativa, segundo nossas informações, contraria fortemente os responsáveis franceses e britânicos. A unidade das grandes potências sobre esse dossiê parece assim ser questionável no plano transatlântico. Paris e Londres comunicaram fortes ressalvas sobre o método adotado pelos estadunidenses, que discutiram a nova abordagem primeiro com os russos e os chineses, antes de falar com os europeus. E também criticaram o conteúdo do esquema proposto, que correria o risco de legitimar as atividades iranianas de enriquecimento de urânio, enquanto o Conselho de Segurança da ONU pede sua suspensão desde 2006.”

Em que consiste essa proposta?

“Um novo projeto de evacuação do urânio enriquecido iraniano para o estrangeiro, indo bem além daquele já proposto em outubro de 2009 (mas rejeitado por Teerã). O objetivo é privar o Irã, durante algum tempo, da capacidade de optar, caso ele tenha que decidir, pela fabricação de matéria físsil utilizável em uma arma atômica (...). A grande novidade é que Washington propôs que o Irã evacue pela Rússia dois mil quilos de urânio fracamente enriquecido (a menos de 5%), sobre alguns dos três mil quilos que ele detém hoje. Essa matéria será, então, transformada para servir de combustível à central nuclear iraniana de Bouchehr (de fabricação russa). Segundo David Albright, cujo ponto de vista coincide com a análise feita em Paris e em Londres, tal projeto ‘forneceria ao Irã a legitimidade internacional que ele procura há muito tempo para o enriquecimento de urânio”. “Dando à Teerã a possibilidade de prosseguir por esse caminho, será ainda mais difícil controlar, por meio de inspeções, que nenhum desvio de matéria nuclear aconteça a partir da instalação de Natanz”, argumenta.

Lembremos que o TNP prevê explicitamente o direito de enriquecimento.

“(...) Será que a administração Obama se lança em um solo diplomático suscetível de marginalizar os europeus? Franceses e britânicos insistiram, nas reuniões com os oficiais americanos, para que uma frente comum seja cuidadosamente preservada. Seria prematuro fazer uma oferta espetacular e inédita ao Irã, enquanto os efeitos das sanções unilaterais de Washington não cessam de aumentar e apenas começam a se fazerem sentir”, julgam eles.
Em resumo, Paris e Londres, assim como Tel Aviv, empurram a administração Obama à intransigência.

Fonte: Le Monde Brasil
Autor: Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).
19 de Novembro de 2010

17 novembro, 2010

A economia segundo a Igreja

A economia segundo a Igreja


Para o Vaticano, o capitalismo, o lucro, a mundialização, a exploração da natureza, a exportação de capital, o mercado financeiro, o crescimento e o desenvolvimento não são grandes problemas. A dificuldade atual da humanidade estaria “apenas no excesso”

O uso da “política do oximoro” pelos governos de países ocidentais tornou-se sistemático1. O oximoro, figura de retórica em que duas noções contrárias aparecem justapostas, permite aos poetas sentirem o indizível e expressarem o inexpressável. Na boca dos tecnocratas, serve, sobretudo, para produzir equívocos grosseiros. A burocracia do Vaticano não escapa à regra; podemos inclusive dizer que foi ela quem inaugurou esse tipo de linguagem. A Igreja tem, de fato, uma longa tradição na prática de antinomias: dos hereges queimados vivos “com amor”, passando pelas cruzadas, até outras “guerras santas”. Agora, Bento XVI nos dá um exemplo atual em relação à economia na encíclica Caritas in veritare.
Aos olhos de certos religiosos como Alex Zanotelli, Don Achille Rossi, Don Ciotti, Raimon Panikkar, sem esquecer a “demoníaca” Teologia da Libertação, assim como aos de intelectuais como Ivan Illich ou Jacques Ellul, a sociedade atual, que preza pelo crescimento, é condenável por sua perversidade intrínseca e não por eventuais desvios. O Vaticano, no entanto, não compartilha essa visão. O capitalismo, o lucro, a mundialização, a exploração da natureza, a exportação de capital, o mercado financeiro, o crescimento ou o desenvolvimento não são problemáticos para a Igreja; a dificuldade residira “apenas no excesso”.
O que chama a atenção é a predominância da doxa (crença) econômica sobre a doxa evangélica. A economia, invenção moderna por excelência, é apresentada como uma essência que não pode ser questionada. “A esfera econômica não é neutra do ponto de vista ético, nem inumana ou antissocial por natureza” (p. 57). Dessa afirmação, pode-se concluir que a esfera econômica pode ser boa apesar de tudo, de modo que a mercantilização do trabalho não é denunciada nem condenada. Paulo VI ensinava que “todo trabalhador é um criador” (p. 65). Isso vale também para a caixa de supermercado? A afirmação parece nos perguntar: “trabalhar é destino?”. Há algo nessa linha de pensamento que soa como o humor involuntário e sinistro de Stalin, que dizia: “Com o socialismo, o trabalho fica mais leve”.
A encíclica de Bento XVI é um exemplo gritante de desenvolvimentismo. Aliás, a palavra “desenvolvimento” aparece 258 vezes em 127 páginas, ou seja, uma média de duas vezes por página. Trata-se de uma perspectiva humanista: desenvolvimento de “casa pessoa”, “pessoal”, “humano” e “humano integral”, “verdadeiramente humano”, “autêntico”, “de todo homem e de todos os homens” e até “um autêntico desenvolvimento humano integral” (p. 110). Vê-se que o bem-estar social foi incorporado, assim como a necessidade de uma “solução adequada aos graves problemas socioeconômicos que afligem a humanidade” (p. 7). Esse entusiasmo não escapou aos partidários do papa, que não economizam argumentos em seu favor. “O ‘desenvolvimento humano integral’ é o conceito fundamental de toda encíclica, utilizado pelo menos 22 vezes para ampliar o conceito tradicional ‘dignidade humana’”, sublinha a universitária britânica Margaret Archer, membro da Academia Pontifical de Ciências Sociais2.
É possível observar inclusive a fetichização/sacralização dessa ideia: “Se o homem (…) não tivesse uma natureza destinada à transcender, (…) seria possível falar em aumento ou evolução, e não em desenvolvimento”. O desenvolvimento do povo é considerado, assim, uma “vocação”. “O evangelho constitui um elemento fundamental do desenvolvimento”, pois revela o homem a si mesmo. Tudo com o respaldo do papa Paulo VI, cuja encíclica de 1967, Populorum progressio, já dizia: “hoje, os povos da fome interpelam de maneira dramática os povos da opulência” (p. 24) – referência do papa à famosa fórmula de seu predecessor: “o desenvolvimento é o novo nome da paz”.
Contrariamente às palavras infelizes de Paulo VI, no entanto, o desenvolvimento não é o novo nome da paz e sim da guerra: guerra pelo petróleo ou por recursos naturais em vias de desaparecimento. Desde sua origem, o crescimento econômico e o desenvolvimento foram empreendimentos agressivos: guerra contra a natureza, guerra contra a economia de subsistência, chamada por Ivan Illich de “vernácula”. Muito antes de o presidente estadunidense Eisenhower explicitar o complexo militar-industrial em torno da guerra, ela já havia se tornado símbolo do desenvolvimento na substituição de carroças por tratores, de pesticida por gás de combate e adubos químicos por explosivos.

Em nome da fé

Nesse contexto, a paz e a justiça só serão colocadas novamente no centro da sociedade pela ideia de “decrescimento”. Isso implica, contudo, uma desconstrução: abolir de uma vez por todas a economia, renunciar ao ritual do consumo e ao culto ao dinheiro. Não se trata de cair na ilusão de uma sociedade onde o mal estaria definitivamente erradicado, mas de construir uma sociedade em tensão, que enfrenta suas imperfeições e contradições em função de um horizonte em que visa o bem comum em vez de desencadear a avidez.
O papa, contudo, não só passa longe dessa perspectiva como parece escrever uma frase diretamente aos “defensores do decrescimento”: “A ideia de um mundo sem desenvolvimento expressa uma falta de fé no homem e em Deus” (p. 20). Todos os clichês desenvolvimentistas são assumidos e reafirmados: “O desenvolvimento continua sendo um fator positivo que tirou bilhões de pessoas da miséria e, finalmente, dá a muitos países a possibilidade de se tornarem atores efetivos na política internacional” (p. 30) – afirmação superficial provavelmente emprestada de seu “especialista”, o economista Stefano Zamagni.
Zamagni afirma, em entrevista à revista Un Mondo possibile: “Mesmo levando em conta o crescimento mundial da população, podemos dizer que a porcentagem de pobres absolutos passou de 62% em 1978 a 29% em 1998”3. Não se sabe de onde ele tirou esses números. Se, de fato, os relatórios do Banco Mundial afirmam que houve diminuição da porcentagem estatística relacionada à pobreza absoluta em consequênciado efeito mecânico provocado pelo crescimento chinês, trata-se de uma queda muito modesta – e não dessa espetacular que nutre os fantasmas dos desenvolvimentistas impenitentes. Zamagni deveria lembrar-se do teorema de Trilussa: quando a produção de dois frangos por dois habitantes (cada um produzindo o seu) passa à produção de quatro frangos produzidos por apenas um habitante, a média passa de um frango por pessoa para dois, mas metade da população se encontrar mais empobrecida.
Com toda a caridade cristã existente no mundo, seria mais interessante lembrar os dados anunciados em setembro de 2008 pelo diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), Jacques Diouf: o número dos que sofrem de fome crônica passou de 848 milhões no período de 2003-2005 a 923 milhões no fim de 2007. Ou evocar, ainda, os paradoxos levantados pela New Economic Foundation: há alguns anos, essa organização não governamental britânica estabeleceu o “índice da felicidade” (“Happy Planet Index”), que subverte tanto a ordem clássica do Produto Interno Bruto (PIB), como a do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
A mundialização figura como algo positivo no discurso do Vaticano, assim como o sistema de livre-comércio. Essa postura é próxima à da Organização Mundial do Comércio (OMC), à do Banco Mundial e à do Fundo Monetário Internacional, cujo antigo diretor, Michel Camdessus, foi conselheiro de João Paulo II. Em um livro intitulado Notre foi dans le siécle [Nossa fé no século], escrito em coautoria com Michel Albert e Jean Boissonnant, Camdessus vê na globalização “o advento de um mundo unificado e mais fraterno”. Os especialistas cristãos afirmam ainda que “a mundialização é uma forma laicizada de cristianização do mundo”4.
A globalização seria “o principal motor para combater o subdesenvolvimento” (p. 50) e não haveria “razão para negar que certo capital pode ser melhor empregado se investido no exterior em vez de na economia nacional” (p. 64). Da mesma forma, a encíclica afirma que o deslocamento empresarial e industrial poderia ser algo muito positivo: “também não haveria razão para negar que os deslocamentos, quando incluem investimentos e formação, podem ajudar as populações dos países receptores” (p. 64).
Em consonância com a doutrina da OMC, a encíclica afirma que o protecionismo dos ricos está condenado, pois impediria que os países pobres exportassem seus produtos e tivessem acesso aos benefícios do desenvolvimento; em suma, o protecionismo seria apontado como a causa da miséria dos países em desenvolvimento. “Os países em vias de desenvolvimento necessitam que seus produtos acedam progressivamente aos mercados internacionais, a fim de tornar possível sua plena participação na economia mundializada” (p. 98).
Não há qualquer referência, contudo, à injustiça e imoralidade das regras do livre-comércio impostas aos países pobres; bastaria ajudá-los a se adaptar: “É de fato necessário ajudar esses países a melhorarem seus produtos e se adaptarem às demandas” (p. 98). Até mesmo o turismo “pode constituir um fator notável de desenvolvimento econômico e de crescimento cultural” (p. 102). Será que, se não for sexual, o turismo organizado é o prolongamento das peregrinações de São Paulo e seus apóstolos?
Graças à confusão gerada pela ideologia dominante entre “mercados” e “Mercado”, ou seja, entre o sistema de troca tradicional e a lógica da oni-mercantilização, essa indistinção tampouco é levada em conta na encíclica. Se na página 98 o termo usado é “mercados internacionais”, em outra é empregado o termo “mercado”, com o mesmo sentido: “A sociedade não deve se proteger do mercado como se o desenvolvimento desse último implicasse ipso facto na ausência de benefícios autenticamente humanos”.
Quanto à destruição do meio ambiente, o problema é mencionado, mas de forma bastante sutil: é necessária uma “governança responsável da natureza que garanta sua conservação, sua rentabilidade e novas formas de cultivo com tecnologias avançadas, de forma que ela possa acolher dignamente e alimentar a população que nela habita” (p. 84). Entre a graça de Deus e da técnica, realmente a menção ao meio ambiente é curta.
Os desastres da economia capitalista não levam, portanto, à condenação de seus agentes. São responsáveis, sem dúvida, mas não culpados se a extorsão do capital é exercida por um “bom motivo”. Assim como na tortura inquisitorial, a solução da quadratura do círculo entre a lógica econômica e a ética cristã é sem dúvida que “tudo isso seja feito sem ódio” – como pregam os manuais dos inquisidores. Sem ódio e até mesmo com amor. A “economização” do mundo pode ser levada adiante, assim, sob o signo da caridade: é a reconciliação de Deus e de Mamon, entidade bíblica demoníaca ligada à iniquidade, mencionada por São Lucas.
A fábula de interesses que favorece a manobra é, por certo, longamente detalhada. “Há uma convergência entre a ciência econômica e os valores morais. Os custos humanos são também custos econômicos” (p. 48). Estamos salvos! Podemos servir aos dois mestres, ao contrário do que diz Lucas em seu evangelho. E tudo isso deve ser mergulhado na água benta dos bons sentimentos, o buonismo, do qual a Itália, sob influência do poder do papa, tornou-se especialista. “A economia, na prática, precisa que a ética do poder funcione corretamente” (p. 75). Felizes são aqueles que ouvem a palavra do Senhor! E assim é lançado um apelo vigoroso à “responsabilidade social” das empresas.
Esse apelo, no entanto, pode não ser suficiente, de forma que nas águas geladas da economia calculista é introduzido como reforço o calor da lógica do dom e da paixão (p. 5): “O princípio da gratuidade e da lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem ter um lugar no interior mesmo da atividade econômica normal” (p. 58). A economia solidária, o setor não lucrativo, o terceiro setor, a economia civil são mencionados e exaltados. “É essa mesma pluralidade de formas institucionais empresariais que pode gerar um mercado mais civilizado e mais competitivo” (p. 78). O mito da boa ação, do “bom negócio”, funciona como se a concorrência, promovida por Bruxelas, já não tivesse, ao contrário, desmantelado a economia social e mutualista, assim como grande parte do setor público.
A condenação das injustiças e imoralidades da economia mundial por parte da Igreja parece, assim, ir menos longe que as denúncias de “excesso” e apelos à moralização do mercado financeiro e do neoliberalismo feitas pelo G20 de Londres e pelo presidente francês Nicolas Sarkozy. Ou ainda, às declarações do presidente estadunidense Barack Obama sobre a obscenidade dos lucros astronômicos dos bancos. O Grande Inquisidor na parábola do livro Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, tinha razão em dizer ao Cristo: “Vá e não volte nunca mais”.

Fonte: Le Monde Brasil (01/08/2010)
Autor: Serge Latouche

1 Bertrand Méheust, La Politique de l’oxymore, La Découverte, Paris, 2009.
2 Margaret Archer, “L’enciclica di Benedetto provoca la teoria sociale”, Vita e Pensiero, n° 5, Milão, setembro-outubro, 2009.
3 “Caritas in veritate e nuovo ordine economico”, Un Mondo possibile, Treviso, setembro de 2009, n° 22, p. 6.
4 Michel Albert, Jean Boissonnat et Michel Camdessus, Notre foi dans le siècle, Arléa, Paris, 2002.

As quatro vidas do modelo Irlandês

As quatro vidas do modelo Irlandês

Tudo começou no final dos anos 1990 quando, subitamente, a economia irlandesa decolou em 10 anos. De lá para cá, se ouve falar das benfeitorias do modelo adotado em Dublin em diferentes situações e com resultados não tão benéficos assim
“Quando o ministro do comércio, da indústria e do turismo da Colômbia visitou o Wall Street Journal a Irlanda era um assunto no qual eu nunca esperaria que ele tocasse. Para minha surpresa, foi o primeiro tema que abordou.”No início do mês de março de 2008, estupefata, a jornalista Mary Anastasia O’Grady fez uma descoberta:“Bogotá está muito interessada no modelo irlandês” (Wall Street Journal, 25 de março de 2008).Porém será o entusiasmo colombiano verdadeiro?
“Vejo somente vantagens no modelo irlandês, essa verdadeira história de sucesso manda um recado para a França”, entusiasmou-se o Primeiro Ministro francês, Jean-Pierre Raffarin (Dublin, 24 de maio de 2004).Um ano mais tarde, uma publicação oficial do governo lituano anunciou que Vilnius (a capital) tinha como objetivo “reproduzir o cenário do crescimento econômico irlandês1”.Logo, o partido conservador britânico arrumou as malas para “observar e aprender com o que estava se passando do outro lado do Mar da Irlanda.Enquanto isso, na Jamaica, o patronato perguntava-se:“Que lições tirar do sucesso fenomenal da Irlanda?”.A reflexão de seus homólogos do Quebec estava mais adiantada: sem dúvida, a Irlanda “constituía o modelo mais apropriado2” para sua província. Da direita da Letônia ao Conselho Nacional do Patronato de Honduras, do Partido Republicano Americano à Câmara do Comércio Américo-Uruguaia, em toda parte, a mesma constatação:“o modelo irlandês é uma estratégia que pode funcionar para outros países, pouco importa a época ou a região geográfica3”

Que modelo ?

Tudo começou no final dos anos 1990 quando, subitamente, a economia irlandesa decolou:entre 1994 e 2004, o crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) atingiu 7 %, um desempenho duas vezes superior ao da economia estadunidense. Três vezes mais rápido que o da zona do euro.
Na mídia, ninguém deixou de perceber que o “prodígio” sobreveio após reformas de natureza “liberal”.Menos de dez anos após ter condenado o país “à catástrofe” (16 de janeiro de 1988), o jornal semanal The Economist reviu seu julgamento:“A Irlanda demonstra incontestavelmente que abraçar a globalização representa o caminho mais rápido para a opulência” (15 de maio de 1997).
Se, das colunas do New York Times às do Figaro, do Wall Street Journal ao Libération, a ilha esmeralda era fascinante, seria porque, de acordo com a opinião geral, o “milagre irlandês” revelou o sucesso do liberalismo.Nada mais natural, portanto, do que convidar o resto do mundo a meditar sobre o exemplo.Assim nascia o modelo irlandês.
Em dezembro de 1995, os franceses foram às ruas.O jornal Capital explicou-lhes que em Dublin “os parceiros sociais (...) jogaram o jogo e proporcionaram um balão de oxigênio para as empresas”.Desde 1987, de fato, uma “parceria social” uniu o Estado, o patronato e os sindicatos, com a “moderação salarial” como objetivo principal.Resultado:“custos salariais baixos e sindicatos moderados permitiram varrer a imagem ancestral de um país rural e indolente” (Le Point, 6 de abril de 1996).
Porém, os esforços irlandeses não se limitaram à civilidade sindical.Le Pointinclinou-se diante uma “política econômica audaciosa que soube atrair as empresas estrangeiras” (23 de agosto de 1997).Como? Levando o imposto das empresas para 10 %4, a menor taxa na Europa. Por outro lado, a República autorizou os “preços de transferência” que permitiram que as multinacionais declarassem seus lucros no país que propunha o regime fiscal mais ameno.Nesse campo, a Irlanda foi imbatível:suas autoridades escolheram “desativar [sic] seu poder de vigilância5”.
Na maioria dos países europeus, tal engenhosidade beiraria a ilegalidade.Mas o fato encantou o Brussels Journal.Por muito tempo, “a voz dos conservadores na Europa” repetiu que era reduzindo os impostos e a burocracia que se estimulava o crescimento econômico:“a Irlanda demonstra que isso é possível e mostra como fazê-lo” (25 de novembro de 2005).
Com essas condições, as multinacionais se precipitaram.A Irlanda acedeu ao lugar de primeiro paraíso fiscal mundial em termos de repatriação de lucros (à frente das Bermudas):esses chegaram a 20 % do PIB.Nessas condições, os economistas preferiram medir a atividade irlandesa com base no Produto Nacional Bruto (PNB) ao invés do PIB.Pois, apesar do seu tamanho (apenas 1% da população europeia), a Irlanda atraiu um quarto dos investimentos americanos ligados à abertura de novos empreendimentos.
No entanto, a receita irlandesa não tinha nada de realmente excepcional.Os pontos essenciais – com o nome de “programas de ajuste estruturais” – foram impostos a muitos outros países, por exemplo, na América Latina.Como explicar, então, que o modelo liberal não engendrou por lá tantos “milagres”?Provavelmente porque a decolagem econômica irlandesa tinha realmente pouco a ver com a preferência de livre-escolha dos dirigentes celtas.
Outros fatores a tornam mais compreensível.A começar pela emancipação progressiva das mulheres.Em 1992, a legalização dos anticoncepcionais levou a uma grande redução da taxa de fertilidade.As irlandesas entraram maciçamente no mercado de trabalho, aumentando as capacidades produtivas do país, até então as mais baixas da Europa.
O “milagre” também se explica pela “simples” recuperação de uma economia atrasada.Em outras palavras:a Irlanda teria “aproveitado” menos do capital estrangeiro que estava acolhendo, do que ele se aproveitou das vigorosas capacidades de produção que lhes eram entregues a bom preço.Dessa forma, entretanto, a República expunha-se a sofrer as conseqüências de qualquer redução da atividade de seus hóspedes.Quando, a partir do ano 2000, a economia americana recuou, o “tigre céltico” adormeceu.
Mas, para qualquer problema há uma solução exemplar:a economia irlandesa conseguiu recobrar o fôlego, e o modelo irlandês, uma segunda vida.Assim como nos Estados Unidos, o Estado incentivou o desenvolvimento do crédito, a “inventividade” bancária, e, sobretudo, a especulação imobiliária.Os preços do setor construtivo cresceram três vezes mais rapidamente do que na França e os canteiros de obra explodiram, sem a mínima relação com a demanda.Logo, 17 % dos lucros do Estado provinham de impostos ligados ao setor da construção.
O FMI não se abalou.Em 2004, seus diretores executivos “felicitaram o desempenho sempre tão notável da economia irlandesa que se baseia sobre políticas econômicas saudáveis e oferece uma lição útil para os outros países7”.A proporção dos salários no valor agregado caiu mais rápido que em qualquer parte na Europa, na contracorrente das desigualdades – que se intensificaram?Pouco importa: o indescritível editorialista do New York Times, Thomas Friedman, resumiu a alternativa que foi oferecida à França e à Alemanha: “transformar-se em Irlanda ou transforma-se em museu” (1o de julho de 2005).
Sabemos o que vem depois.O mundo afundou pouco a pouco na crise financeira, a economia irlandesa desabou, a bolsa de Dublin despencou.Em 2008, o desemprego saltou de 85 % – a maior alta da Europa do Oeste – e a arrecadação do Estado diminuiu de 13 %.A Irlanda foi o primeiro país a entrar em recessão.Outros modelos passaram para a posteridade por muito menos.
Entretanto, à imagem da fênix liberal renascendo das cinzas para impor seus próprios remédios para os prejuízos que havia causado, o “modelo irlandês” sobreviveu mais uma vez ao próprio trespasse e continuou a mostrar o caminho. O da austeridade.
Sob a direção de Dublin, a “brutalidade” social estabeleceu-se como virtude.Essa “severidade” caracterizou-a como “modelo para os outros países da zona do euro”. Diminuição do salário do funcionalismo (até 20 %), redução dos auxílios para as famílias de 10 %, e amputação semelhante de todas as prestações sociais.Quando, em fevereiro de 2010, a Europa estimou que a Grécia deveria “ir ainda mais longe” na austeridade orçamentária, foi com toda naturalidade que a Alemanha a aconselhou a “imitar a Irlanda” (Reuters, 16 de fevereiro de 2010).
Em abril, a ilha recebeu novamente as felicitações da Comissão Europeia:o retrato da austeridade vem acompanhado de um modelo de “coesão social”.
A ira dos irlandeses teve dificuldades para se expressar.A identidade dos partidos políticos construiu-se em torno da questão da independência, que os opôs; o consenso liberal os uniu.Os sindicatos, vimos, aprenderam as virtudes do “diálogo social”.E a população continuou tão preocupada com a separação entre católicos e protestantes que às vezes se desinteressou das barreiras que opunham as classes sociais.Finalmente, a emigração – que recomeçou com força total8 –, ofereceu aos mais descontentes a esperança de encontrar algo melhor, em outra parte.
Já em abril de 2009, o ministro das finanças irlandês, Brian Lenihan, felicitava-se: “Nossos parceiros na Europa estão impressionados com nossa capacidade de suportar a dor. Na França, continuou, vocês teriam enfrentado protestos se tivessem experimentado isso.”Um ano mais tarde, às vésperas da divulgação de seu próprio orçamento de austeridade, os conservadores britânicos – doravante no poder, com seus aliados liberais-democratas – viraram novamente os olhos para a outra margem do Mar da Irlanda:“representantes do ministério das finanças passaram muito tempo ao telefone com Dublin, para (...) compreender como o governo de coalizão irlandês conseguiu cortar as despesas sem desencadear uma agitação social como a que vimos na Grécia ”(Financial Times, 23 de maio de 2010).
E sobreveio uma nova metamorfose do “modelo irlandês” - uma quarta vida -, que suscitou menos admiração.
“Se a Irlanda não tivesse agido como ela o fez, poderia ter terminado como a Grécia” assegurava o jornal Financial Times no dia 10 de maio de 2010.Três meses mais tarde, Atenas estava no seu direito de sorrir.O próprio Wall Street Journal reviu seu texto:“Até pouco tempo atrás, pensava-se que a Irlanda conseguiria resolver seus problemas financeiros graças a um programa agressivo de cortes orçamentários, o mais importante da zona do euro.Mas, embora os problemas da Irlanda persistam, seu crédito com os investidores diminuiu” (9 de setembro de 2010).Esses últimos estariam temendo um roteiro “à grega”, por causa dos prejuízos econômicos causados pelo rigor irlandês.
Ninguém mais fala de “milagre”, mas a experiência irlandesa continua rica de ensinamentos.Na questão da eficiência das políticas de austeridade, por exemplo.
Os investimentos diminuíram de 15% em 2008 e de 30% em 2009.Pressionado pelos cortes orçamentários, pelas diminuições salariais e pelas reduções das prestações sociais, o consumo baixou mais de 7 % em 2009.Isso equivale a dizer que a atividade econômica conheceu um período mais eufórico:o PNB mergulhou de 3 % em 2008 e de 11 % em 2009.De acordo com a agência de notação Standard & Poor’s, o poço sem fundo do restabelecimento bancário aumentou a dívida.Essa era de 33 % do PIB em 2001 e poderá ultrapassar os 110 % em 2012.O déficit orçamentário atingirá... 20 % do PIB em 2010, 23 % do PNB.Isso é pouco comum.
Juntamente com o diretor do jornal escocês The Scotsman, Bill Jamieson, os partidários da austeridade proclamavam ontem que “a experiência irlandesa contradiz a crítica keynesiana segundo a qual os cortes orçamentários seriam contraprodutivos uma vez que mergulhariam um pouco mais a economia na recessão” (5 de julho de 2010).A última mutação do “modelo irlandês” os levará a moderar suas certezas?
Aparentemente, não as do FMI.Em agosto de 2010, inabalável, ele convidou Dublin a “efetuar novos cortes orçamentários para manter a confiança dos mercados” (Financial Times, 26 de agosto de 2010).

Fonte: Le Monde Brasil
Autor: Renaud Lambert

1. Publicação citada por Finton O’Toole em Ship of fools, PublicAffairs, New York, 2010.
2. Perspectives, 30 de abril de 2008.
3. Conclusão de uma conferência organizada pela Sociedades das Américas em agosto de 2007.
4. 12,5 % a partir de 2003.
5. Brochura governamental citada por Finton O’Toole, op. cit.
6. O PIB mede o valor total da produção de um país, sem levar em conta a nacionalidade dos agentes econômicos. O PNB reflete a riqueza produzida pelos residentes do país no mercado doméstico ou em outra parte. Portanto, ele exclui os lucros repatriados pelas multinacionais no território nacional.
7. Citado por Jim O’Leary em “External surveillance of Irish fiscal policy during the boom”, Irish economy, n°11, julho de 2010.
8. Em 2009, a Irlanda teve a maior taxa líquida de emigração da União Europeia (9 por 1000). Logo em seguida vinha a Lituânia (4,6 por 1000).

Por que os beduínos não se submetem

Por que os beduínos não se submetem


Desde junho, a península do Sinai, na fronteira entre Israel e o território palestino de Gaza, é cenário de vários enfrentamentos entre beduínos e as forças de segurança do Egito.
Os beduínos são uma comunidade nômade que vive nos desertos do Oriente Médio e África. Estima-se que na península do Sinai, entre os mares Mediterrâneo e Vermelho, vivam cerca de 380 mil, integrantes de 26 tribos.
“É uma região sensível, por sua proximidade com a Palestina ocupada”, considera o analista Amr Hashen Rabie, do Centro Al Ahram de Estudos Estratégicos e Políticos. Ele continua: “além disso, há uma crise de confiança antiga entra as tribos locais e a polícia”.
No final de setembro, registraram-se “enfrentamentos limitados” entre beduínos e forças de segurança, após uma tentativa de expulsá-los da zona que ocupam, no centro do Sinai. Uma semana antes, sete beduínos foram condenados a 35 anos de prisão por agredir, em maio, a policiais e “perturbar o comércio entre Egito e Israel”, segundo a imprensa estatal. Os líderes beduínos negam as acusações. “São invenções com finalidades políticas”, sustentou Mussa al-Delha, porta-voz das tribos do centro da península.
Pouco depois da decisão judicial, desconhecidos armados dispararam contra o entroncamento comercial de Al Auja, entre Egito e Israel. As operações foram temporariamente paralisadas. Em seguida, veículos blindados fustigaram povoados da tribo Tarabin e impuseram toque de recolher em sua área.
Não foram os primeiros distúrbios deste ano, na península do Sinai. Em junho, a polícia lançou uma campanha no centro da região, para capturar a beduínos procurados. As forças de segurança empregaram veículos armados, que teriam disparado de forma indiscriminada contra casas na zona de Wadi Aamer. Os beduínos responderam no mês seguinte, atacando um comboio de ônibus que se dirigia a Gaza e atentando contra um gasoduto vital, próximo à fronteira.
As relações entre o governo e as tribos beduínas do Sinai – tensas, no melhor dos casos – deterioraram-se nos últimos seis anos. Um atentado triplo a bomba, no balneário de Taba, em 2004, provocou a morte de 34 pessoas e foi seguido por outras explosões.
No ano seguinte, 88 pessoas morreram em outro ataque, no balneário de Sharm el-Sheij. Em 2006, dezenas de pessoas perderam a vida na localidade turística de Dehab. Depois, voltaram as detenções maciças de habitantes da região, apesar de não haver provas de sua participação em episódios de violência.
Os distúrbios atuais são consequência da dura resposta policial a estes ataques, afirma Jalil Gabr, coordenador do Comitê Popular pelos Direitos Civis para o Norte e Centro do Sinai. “Deste então, a polícia trata os beduínos com desprezo e violência. O Estado é totalmente responsável pelo caos atual na península”.
Os líderes tribais reivindicaram várias vezes o fim da violência da polícia contra a população local e a liberdade dos beduínos detidos sem processo, após os atentados. Ainda há cerca de 4 mil pessoas presas, segundo um porta-voz da comunidade. Ativistas beduínos também pedem o desenvolvimento econômico da península, adiado historicamente pelo governo central, e oportunidades de emprego para a população local.
Após o atentado contra o gasoduto, pelo qual o gás natural flui até Israel, o ministério do Interior prometeu libertar diversos beduínos. No início destes mês, membros do partido do governo reuniram-se com líderes da etnia para escutar suas queixas e negociar uma trégua.
“Mas a trégua só durou duas semanas, devido às provocações da polícia”, frisou Gabr. “Muitos funcionários reconhecem que nossas reivindicações são legítimas, mas a polícia do Sinai insiste em submeter os beduínos pela força, um contexto que só agrava a tensão”, acrescentou. Segundo ele, “as ameaças contra interesses estratégicos do Egito levaram o governo a fazer certas concessões, como libertar mais de cem presos.
“Os beduínos aprenderam a explorar as fraquezas do governo”, afirma Rabie, do Centro Al-Ahram. “Por exemplo, organizam manifestações próximas à fronteira com Israel, bloqueiam vias comerciais ou ameaçam gasodutos, como forma de pressionar as autoridades para que atendam suas exigências. Além disso, não gostam de receber ordens”, frisou – “e os métodos da polícia costumam ser violentos e cruéis".
O acordo de Camp David, firmados em 1979, entre Egito e Israel, proíbem o Cairo de deslocar quantidade significativa de policiais ou soldados à sua fronteira nordeste. Além disso, o Egito não deseja nenhum tipo de tensão diplomática ou política nesta área delicada.

Fonte: Outras Palavras (03/11/2010)
Autores: Adam Morrow e Khaled Moussa al-Omrani, da Agência IPS

06 novembro, 2010

O voto do Nordeste e as elites

O voto do Nordeste e as elites

A ampla vantagem da candidata Dilma Rousseff no primeiro turno no Nordeste reacende o preconceito de parte de nossas elites e da grande mídia face às camadas mais pobres da sociedade brasileira e em especial face ao voto dos nordestinos. Como se a população mais pobre não fosse capaz de compreender a vida política e nela atuar em favor de seus interesses e em defesa de seus direitos. Não "soubesse" votar.
Desta vez, a correlação com os programas de proteção social, em especial o "Bolsa Família" serviu de lastro para essas análises parciais e eivadas de preconceito. E como a maior parte da população pobre do país está no Nordeste, no Norte e nas periferias das grandes cidades (vale lembrar que o Sudeste abriga 25% das famílias atendidas pelo "Bolsa Família"), os "grotões"- como nos tratam tais analistas ? teriam avermelhado. Mas os beneficiários destes Programas no Nordeste não são suficientemente numerosos para
responder pelos percentuais elevados obtidos por Dilma no primeiro turno : mais de 2/3 dos votos no MA, PI e CE, mais de 50% nos demais estados, e cerca de 60% no total ( contra 20% dados a Serra).
A visão simplista e preconceituosa não consegue dar conta do que se passou nesta região nos anos recentes e que explica a tendência do voto para Governadores, parlamentares e candidatos a Presidente no  Nordeste. A marca importante do Governo Lula foi a retomada gradual de políticas nacionais, valendo destacar que elas foram um dos principais focos do desmonte do Estado nos anos 90. Muitas tiveram como norte o combate às desigualdades sociais e regionais do Brasil. E isso é bom para o Nordeste.
Por outro lado, ao invés da opção estratégica pela "inserção competitiva" do Brasil na globalização - que concentra investimentos nas regiões já mais estruturadas e dinâmicas e que marcou os dois governos do PSDB -, os Governos de Lula optaram pela integração nacional ao fundar a estratégia de crescimento na produção e consumo de massa, o que favoreceu enormemente o Nordeste. Na inserção competitiva, o Nordeste era visto apenas por alguns "clusters" (turismo, fruticultura irrigada, agronegócio graneleiro...)
enquanto nos anos recentes a maioria dos seus segmentos produtivos se dinamizaram, fazendo a região ser revisitada pelos empreendedores nacionais e internacionais.
Por seu turno, a estratégia de atacar pelo lado da demanda, com políticas sociais, política de reajuste real elevado do salário mínimo e a de ampliação significativa do crédito, teve impacto muito positivo no Nordeste. A região liderou - junto com o Norte - as vendas no comercio varejista do país entre 2003 e 2009. E o dinamismo do consumo atraiu investimentos para a região. Redes de supermercados, grandes magazines, indústrias alimentares e de bebidas, entre outros, expandiram sua presença no Nordeste ao
mesmo tempo em que as pequenas e medias empresas locais ampliavam sua produção.
Além disso, mudanças nas políticas da Petrobras influíram muito na dinâmica econômica regional como a decisão de investir em novas refinarias (uma em construção e mais duas previstas) e em patrocinar - via suas compras - a retomada da indústria naval brasileira, o que levou o Nordeste a captar vários estaleiros.
Igualmente importante foi a política de ampliação dos investimentos em infra-estrutura - foco principal do PAC - que beneficiou o Nordeste com recursos que somados tem peso no total dos investimentos previstos superior a participação do Nordeste na economia nacional.

No seu rastro,a construção civil "bombou" na região.

A política de ampliação das Universidades Federais e de expansão da rede de ensino profissional também atingiu favoravelmente oNordeste, em especial cidades médias de seu interior. Merece destaque ainda a ampliação dos investimentos em C&T que trouxe para Universidades do Nordeste a liderança de Institutos Nacionais ? antes fortemente concentrados no Sudeste - dentre os quais se destaca o Instituto de Fármacos ( na UFPE) e o Instituto de Neurociências instalado na região metropolitana de Natal sob a liderança do cientista brasileiro Miguel Nicolelis que organizará uma verdadeira cidade da ciência num dos municípios mais pobres do RN ( Macaíba).
Igualmente importante foi quebrar o mito de que a agricultura familiar era inviável. O PRONAF mais que sextuplicou seus investimentos entre 2002 e 2010 e outros programas e instrumentos de política foram criados ( seguro safra , Programa de Compra de Alimentos, estimulo a compras locais pela Merenda Escolar, entre outros) e o recente Censo Agropecuário mostrou que a agropecuária de base familiar gera 3 em cada 4 empregos rurais do país e responde por quase 40% do valor da produção agrícola nacional.
E o Nordeste se beneficiou muito desta política, pois abriga 43% da população economicamente ativa do setor agrícola brasileiro. Resultado: o Nordeste liderou o crescimento do emprego formal no país com 5,9% de crescimento ao ano entre 2003 e 2009, taxa superior a de 5,4% registrada para o Brasil como um todo, e aos 5,2% do Sudeste, segundo dados da RAIS.
Daí a ampla aprovação do Governo Lula em todos os Estados e nas diversas camadas da sociedade nordestina se refletir na acolhida a Dilma. Não é o voto da submissão - como antes - da desinformação, ou da ignorância. É o voto da auto- confiança recuperada, do reconhecimento do correto direcionamento de políticas estratégicas e da esperança na consolidação de avanços alcançados - alguns ainda incipientes e outros insuficientes. É o voto na aposta de que o Nordeste não é só miséria (e, portanto, "Bolsa Família"), mas uma região plena de potencialidades.

Fonte: Outras Palavras
Autora: Tânia Bacelar de Araujo é especialista em desenvolvimento regional, economista, socióloga e professora do Departamento de Economia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Por que não uma menina?

Por que não uma menina?

Cada vez é maior o número de chineses com recursos econômicos como Li Xiaoxue e seu marido, Dai Chunlin, que se propõem a driblar a política nacional de filho único para ter uma menina.
“Se meu filho quiser ir trabalhar longe de casa, a menina poderá ficar e cuidar da gente”, explicou Li, de 34 anos. O casal tem uma empresa de computação em Pequim e renda equivalente a US$ 75 mil ao ano, suficiente para se esquivar dessa política.
A lei prevê multa de acordo com a renda anual da família, que pode variar entre US$ 45 mil e até mais de US$ 100 mil. “É muito caro ter um homem, especialmente em grandes cidades como Pequim e Xangai. Temos de comprar-lhe pelo menos um apartamento, porque do contrário será difícil ele encontrar uma noiva”, disse Li. O caso de Li e Dai não é o único. A preferência histórica pelo filho homem neste país causou um grande desequilíbrio de gênero. Porém, a situação começou a mudar nas cidades.
De 3.500 futuros pais entrevistados para um estudo feito em Xangai, em 2009, 15% disseram preferir uma menina e 12% um homem. Para o restante, era indiferente. Li tem muitas amigas que também querem meninas, pois estão conscientes de que o desequilíbrio de gênero se tornou perigoso. Para ela também parece antiquada a ideia de que as mulheres não podem fazer o mesmo que os homens. “As mulheres também podem herdar o negócio familiar. São tão capazes quanto os homens”, afirmou.
São vários os fatores que explicam a mudança de atitude, segundo sociólogos e demógrafos. O grande crescimento econômico criou mais oportunidades para as mulheres, especialmente nas cidades. O aumento da renda acabou derrubando as razões tradicionais para preferir um menino, como a de que ganham mais dinheiro e são capazes de ajudar os pais idosos. Algumas pessoas, como Li, pensam que é muito caro criar um filho homem e que uma filha tem condições de cuidar delas dentro de alguns anos.
O desequilíbrio de gênero na China é crítico. Em 2005, nasceram 119 homens para 100 meninas. Em algumas regiões, esta proporção chegou a ser de 130/100. Os demógrafos consideram que a proporção adequada para manter um equilíbrio de gênero é de 105 homens para 100 meninas. Nas zonas rurais, a histórica preferência pelos homens gerou vários problemas sociais, como abortos seletivos, prostituição e tráfico de pessoas. Este país tem 32 milhões a mais de homens.
A mudança de atitude leva muitos especialistas a pensarem que a China pode seguir a mesma evolução da Coreia do Sul. O processo de transformação nesse país começou há 20 anos. Em 2006, nasceram 107,4 homens para cada 100 meninas, menos do que os 116,5 de 1990, segundo estudo feito em 2007 pelo Banco Mundial. As mudanças econômicas ocorridas na Coreia do Sul no final da década de 1980 criaram oportunidades para que as mulheres se integrassem ao mercado de trabalho e a ideia tradicional sobre seu papel na sociedade mudou.
Nos anos 1970, o governo lançou uma campanha a favor da igualdade de gênero e em 1987 proibiu os médicos de revelarem o sexo do feto. A China ainda tem um longo caminho pela frente. O desequilíbrio nos nascimentos é o problema demográfico mais grave, segundo estudo feito este ano pela estatal Academia Chinesa de Ciências Sociais. “Os abortos segundo o sexo do feto são extremamente comuns, especialmente em áreas rurais”, diz a pesquisa. A Academia atribui a situação às três décadas de política de filho único e ao deficiente sistema de assistência social.
O desequilíbrio de gênero reduz as possibilidades de os homens de baixa renda encontrarem esposas, explicou Wang Guangzhou, um dos pesquisadores do estudo, segundo o jornal em inglês Global Times. “Para um camponês de 40 anos será mais difícil se casar, terá de depender mais da assistência social quando for idoso e carecer de renda”, disse outro colaborador da pesquisa, Wang Yuesheng. Segundo a Comissão Nacional de População e Planejamento Familiar, o tráfico de mulheres e os sequestros são “endêmicos” em áreas com muitos homens.
A preferência pelo filho homem muda nas cidades, mas nas zonas rurais continua muito arraigada, disse Zheng Zhenzi, diretor do Instituto de Pesquisa sobre População na Academia de Ciências Sociais de Guangdong. A China avançou muito em matéria de igualdade de gênero, disse Zheng à IPS. Cada vez há mais mulheres em cargos administrativos e realizando estudos terciários. Além disso, são aprovadas leis para promover a igualdade, acrescentou. “A maioria das mulheres tem o mesmo status que seus maridos. Contudo, resta um longo caminho pela frente”, ressaltou Zheng. Envolverde/IPS

Autor: Mitch Moxley
Pequim, China, 5/11/2010.