18 janeiro, 2010

Haiti

As entrevistas a seguir foram extraídas do Jornal Folha de São Paulo, edição de 18 de janeiro de 2010.

"Governo haitiano é predador"


SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL

A classe governante do Haiti ignora a população e vive só para extrair dinheiro do país, disse à Folha por telefone o jornalista e escritor americano Mark Danner, especialista em questões haitianas.

FOLHA - Por que o presidente René Préval até agora não discursou à nação nem visitou campos de desabrigados?

MARK DANNER - Os governos haitianos nunca foram norteados pelo desenvolvimento nacional. Eles funcionam apenas como mecanismos de extração pelos quais a elite suga dinheiro do país. A classe governante é predadora.

FOLHA - Como assim?

DANNER - Quando era uma rica colônia, o Haiti funcionava com base em grandes latifúndios onde trabalhavam os escravos. Não é por acaso que a distribuição de terra foi um dos pilares da revolução [1804]. Após a independência, o Haiti se tornou uma nação de pequenos plantios e, com isso, a riqueza fugiu do alcance das elites governantes. Para compensar a perda, essas elites passaram a cobrar impostos altíssimos da classe agrícola. O Estado acabou virando a maior fonte de riqueza do Haiti, o que explica em grande parte a instabilidade. Os governos desde então só querem saber de extrair dinheiro do país. E depois que os solos se esgotaram e que o produção agrícola desmoronou, a fonte dessa extração migrou de vez da agricultura para a ajuda externa. Os americanos dizem ter mecanismos para garantir que o dinheiro chegue à população, mas o governo é sustentado pela ajuda internacional. E mesmo quando algum auxílio chega à população, o governo sai ganhando, pois fica isento de certos gastos.

FOLHA - Isso é reversível?

DANNER - Os americanos dirão que, para revitalizar o Haiti, será preciso ir além da simples reconstrução física do país. Não duvido que haverá esforços nessa direção, mas há sinais de que alguns erros do passado continuarão.
Ouvi no rádio, depois do terremoto, um funcionário do governo americano dizendo que uma boa maneira de fornecer ajuda sustentável ao Haiti é dar trigo para os moinhos que o país tem. A ideia seria, segundo o funcionário, incentivar os haitianos a participar do processo.
O problema é que esses moinhos foram construídos na época [do ditador François] Duvalier [1957-1971] com a ideia de aproveitar as sementes de trigo doadas pelos EUA. Mas quem saía beneficiado eram os americanos, que conseguiam escoar o excesso de produção. E Duvalier roubava sementes de todos os moinhos. Além disso, a importação de sementes contribuiu para destruir as plantações de arroz. O Haiti não precisa de pão, precisa de arroz.
Parece que Washington não tem noção do que aconteceu. Americanos têm qualidades, mas a memória não faz parte delas.

"Não basta dar apenas ajuda aos haitianos"


DE WASHINGTON

A opinião polêmica é do escritor americano Tracy Kidder, 64, ganhador prêmio Pulitzer por "The Soul of a New Machine" (A Alma de Uma Nova Máquina, 1981). (SÉRGIO DÁVILA)

FOLHA - O terremoto não é culpa de ninguém, mas qual a contribuição histórica dos EUA para que o desastre encontrasse o país no estado calamitoso que encontrou?

TRACY KIDDER - O Haiti tem sido uma colônia virtual dos EUA, e se você olha o resultado disso, nós não fizemos um bom trabalho, fizemos? A política dos EUA em relação ao Haiti tem sido em geral ruim.
É verdade que vinha melhorando e houve momentos em que não foi tão má, por exemplo na gestão de Bill Clinton (1993-2001).

FOLHA - Como avalia as ações do governo Obama em relação ao desastre até agora?

KIDDER - É muito difícil dizer no calor do momento, com tudo ainda tão caótico e tenso, mas eu sei que um esforço grande de resgate e recuperação foi iniciado, não só pelos EUA, mas por Japão, China, Venezuela, entre outros.
Agora, para que a ajuda seja efetiva, ela tem de envolver os locais, o governo local. Esse modelo tem sido ignorado pelos ocidentais. Parece complicado, mas pode ser feito. As pessoas não têm de esperar por ordens de Washington. Esse modelo pode reverter séculos de degradação do povo haitiano, que começou como colônia escrava e, após se libertar, foi punido e se tornou pária.

FOLHA - O sr. tem criticado as mais de 10 mil organizações humanitárias que atuam no Haiti. Por quê?

KIDDER - Obviamente, é um número enorme de organizações e há várias coisas erradas com elas. Algumas são boas, não quero condenar todas. Mas não estão tentando usar os locais, trabalhar com o governo local -pelo contrário. A desculpa mais comum é que o governo é muito fraco ou corrupto. Mas é uma razão a mais para trabalhar com ele, de maneira a fortalecê-lo.
Nesse número enorme de organizações, algumas são muito pequenas, outras são fachadas para lavagem de dinheiro e algumas servem apenas a si mesmas. Mais do que isso, no entanto, é que coletivamente elas tomam boa parte do papel do governo. Mas o que oferecem no lugar é o pior tipo de governo que se pode imaginar, com operações completamente descoordenadas.
Não é que eu ache que o Haiti não mereça e não precise de uma grande dose de ajuda internacional. Mas tem de ser da maneira certa, e as evidências apontam claramente que isso não acontece. Uma grande quantidade de dinheiro foi desperdiçada lá e não melhorou a vida da vasta maioria.

FOLHA - O sr. vê o fantasma do Katrina influenciando a reação do governo Obama?

KIDDER - Não sei, mas espero que sim, que o governo tenha aprendido algo com o Katrina. Aquela foi a mais ineficiente e ridícula resposta imaginável.

"Arrecadação humanitária virou negócio"


LUCIANA COELHO
DE GENEBRA

A arrecadação humanitária virou um negócio em que os doadores competem por espaço na mídia, diz o especialista em assistência humanitária e desenvolvimento Paolo de Renzio, pesquisador de governança econômica global no Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de Oxford.

FOLHA - Como é o funil que converte fundos em ações?

PAOLO RENZIO - O problema é que há vários funis: a ONU e suas agências, os governos dos países, as ONGs, cada um agindo separadamente. A arrecadação humanitária virou um "business", um negócio em que cada um quer se mostrar em ação.

FOLHA - Uma vitrine?

RENZIO - Exato. Como há muita atenção da mídia em curto período, todos querem aparecer doando.

FOLHA - O que muda na arrecadação após um grande desastre em relação à ajuda para o desenvolvimento?

RENZIO - Publicidade, urgência, retorno imediato. Um problema pode ser o cansaço da opinião publica em relação aos desastres. Outro é que, quando o mídia vai embora, todo o mundo esquece. O terceiro problema é a fragmentação e a falta de coordenação na arrecadação e a escassa transparência e prestação de contas.

FOLHA - E o planejamento?

RENZIO - Há necessidade de resposta imediata e há questões de coordenação. É preciso preparação prévia. A pressão em gastar os fundos com rapidez pode levar a ineficiências. Há doadores que fixam prazos de seis meses. Avaliar a eficácia das ações também muda, com indicadores de curto prazo no caso de desastres e de médio-longo prazo para ajuda ao desenvolvimento. Seria importante ligar os dois.

FOLHA - Há estimativa de quanto da arrecadação se converte em ajuda a flagelados?

RENZIO - Difícil. Tenho visto números que variam de 5% a 50% dos fundos.

FOLHA - Qual o maior obstáculo ao bom uso dos fundos?

RENZIO - Falta de coordenação; falta de consideração da ligação com a fase de reconstrução; uso exclusivo de materiais importados. Por exemplo, não se pode fazer abrigos temporários e se esquecer que será preciso reconstruir as moradias quando o foco da mídia mudar e as doações sumirem.

FOLHA - No Haiti, onde a governança é quase nula, qual o caminho para aplicar a verba?

RENZIO - O Haiti é um caso especial, pois já considerava a infraestrutura do governo fraca e ela foi destruída, o epicentro foi na capital. É diferente do que houve na Indonésia ou no Peru. Por isso, canais paralelos são obrigatórios. O problema é coordenar.

FOLHA - A ONU diz que a arrecadação é transparente. Mas não monitora a aplicação.

RENZIO - Isso é um problema mais geral do sistema da ajuda internacional. Sabe-se quanto se quer gastar, menos sobre o que foi gasto e quase nada sobre como foi gasto.

Terremoto pode ser uma oportunidade

Para cientista político haitiano, auxílio deveria ser dirigido a criar e fortalecer as instituições nacionais, e não ONGs que atuam no país

A DESTRUIÇÃO provocada pelo terremoto pode ser transformada em oportunidade para um novo "contrato social" entre os haitianos e para a mudança das políticas prescritas ao Haiti pelos doadores internacionais e organismos multilaterais, afirma Robert Fatton Jr.

Na avaliação do cientista político haitiano radicado nos EUA, essas políticas reforçaram a debilidade das instituições nacionais e contribuíram para o declínio da agricultura local, obrigada a concorrer com importações subsidiadas em seus países de origem.

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

Robert Fatton Jr. é professor da Universidade da Virgínia e autor de "A República Predatória do Haiti: a Transição sem Fim para a Democracia" (sem tradução no Brasil), entre outros textos sobre o país onde nasceu e viveu até o final da adolescência, quando deixou Porto Príncipe para estudar na França, a antiga metrópole colonial, e depois nos EUA. Escreveu ainda quatro livros sobre política africana, entre eles "Consciência Negra na África do Sul" (1986) e "Revolução Passiva no Senegal" (1987). Quando conversava com a Folha, o professor foi interrompido pela ligação de um sobrinho que mora em Miami. "Nos falamos há três horas, mas ele queria saber se há mais notícias. A comunicação está difícil." Por mensagens curtas de celular ou e-mail, Fatton Jr.soube que sua família, que vive em Pétionville, subúrbio nobre da capital haitiana, havia sobrevivido. "Tiveram sorte. Mas há amigos que não sei se estão vivos ou mortos."

FOLHA - Como avalia a situação do Haiti antes do terremoto e o que pode mudar agora?

ROBERT FATTON JR. - A situação política havia se estabilizado, a violência havia diminuído, mas a situação como um todo ainda era muito precária. Eleições estavam programadas para este ano [legislativas em fevereiro e presidencial em novembro], mas não imagino que possam ser realizadas. O terremoto pode ser um desastre completo ou uma oportunidade para mudar algo. O fato de que todos os haitianos estão diante da catástrofe pode levar a um contrato social diferente, numa sociedade muito dividida. Do seu lado, a comunidade internacional precisa mudar algumas políticas, que em última instância limitaram a capacidade do Estado haitiano. Hoje, nas operações de socorro, você pode ver que não há instituições nacionais, só ONGs. Espero também que a ajuda internacional dê mais ênfase à área rural. Embora ela não tenha sido tão afetada pelo tremor, 60% da população ainda vive lá. O fato de quase 3 milhões de pessoas se aglomerarem em Porto Príncipe em condições terríveis é consequência de não haver política agrícola.

FOLHA - Uma das críticas à política dos EUA para o Haiti é a de que, quando Jean-Bertrand Aristide foi reconduzido à Presidência com apoio militar americano (1994), uma das condições foi que ele implantasse uma política econômica liberalizante. Isso teria dizimado a agricultura. É uma crítica correta?

FATTON - Isso é absolutamente verdade. Mesmo antes da volta de Aristide, os militares começaram a abrir a economia, em particular para o arroz americano. Esse arroz, que é subsidiado, era vendido muito mais barato do que a produção local, que entrou em declínio. Quando Aristide voltou, ele assinou um acordo com o FMI e o Banco Mundial consolidando o projeto neoliberal. A abertura teve um impacto devastador na produção de comida e nas pequenas indústrias que produziam para o mercado interno. A estratégia continua sendo a mesma, voltada para a criação de núcleos urbanos de confecção de produtos baratos para exportação aos EUA, principalmente têxteis.

FOLHA - Como as maquiladoras mexicanas?

FATTON - É o modelo. Na minha visão, não funciona. Já foi tentado sob [o ditador] Jean-Claude Duvalier [1971-1985] e levou a uma catástrofe. Não é que o Haiti não tenha que ter uma base exportadora, mas ela não deve ser o motor do desenvolvimento do país. Se esse rumo for mantido, haverá pequenos encraves, com trabalhadores mal pagos, e o campo continuará negligenciado.

FOLHA - O Haiti é dependente de ajuda internacional. Por que esse dinheiro não produziu resultados na redução da pobreza, por exemplo?

FATTON - Se você olhar os últimos 15, 20 anos, muito dinheiro foi enviado ao Haiti, mas boa parte dele ligado a companhias americanas. Há um círculo vicioso, porque o dinheiro volta para os EUA. Em meados dos anos 90, os EUA davam anualmente US$ 3 bilhões ao Haiti, mas uma parte significativa ia para os soldados americanos que estavam lá, para os assessores americanos e para a compra de produtos americanos. As doações também evitavam o Estado e eram dadas a instituições não governamentais, porque a premissa era a de que o governo era corrupto e ineficaz. O problema é que ONGs em geral têm base local, e suas atividades não são filtradas através de um programa nacional abrangente. E, apesar de haver ONGs que prestam ótimos serviços a pessoas pobres, há outras que são igualmente corruptas. E não se sabe o quanto do que recebem vai de fato para ajuda ao desenvolvimento.

FOLHA - A debilidade do Estado é fenômeno recente no Haiti ou sempre foi assim?

FATTON - A ideia de um Estado fraco é complicada. Sob os Duvalier [1957-1985] havia um Estado incompetente e corrupto, mas forte na repressão. Após a queda da ditadura, houve uma série de crises, com eleições fracassadas e golpes, que minaram o Estado por dentro. Essa tendência se agravou sob a orientação dos principais doadores, que viam o Estado como um problema. Agora, se a comunidade internacional tem intenções sérias de reconstruir o país, deve contribuir para a implantação de um serviço público efetivo. Do contrário, haverá alívio, mas não desenvolvimento.

FOLHA - Como avalia o trabalho da Minustah, a força de paz da ONU?

FATTON - Se não fosse pela Minustah, o país estaria sob caos ainda maior. Goste-se ou não, ela é elemento essencial da situação atual. Foi criticada às vezes por ser muito violenta, outras vezes por não ser violenta o suficiente. Não é surpreendente que os haitianos tenham uma relação de amor e ódio com a Minustah. Não gostamos de tropas estrangeiras em nosso solo, mas sabemos que não podemos ficar sem ela. O ponto-chave é como fazer a transição da Minustah para uma força local.

FOLHA - Países como o Brasil, com posição de comando na Minustah, podem influenciar políticas de instituições multilaterais para o Haiti?

FATTON - Tenho a esperança de que possam mover os EUA para uma orientação diferente da política econômica prescrita para o Haiti. Se têm o poder para fazer isso, é outra questão. A Minustah é em grande parte um assunto latino-americano, com o Brasil no centro. Os EUA gostam disso, porque não precisavam mandar seus próprios soldados. Isso dá peso ao Brasil. Mas, pelo discurso de [Barack] Obama [na última quinta-feira], haverá de novo um enorme envolvimento americano no Haiti.

FOLHA - O senhor disse que o terremoto poderia produzir um novo contrato social no Haiti. Por quê?

FATTON - O terremoto afetou a todos, pobres e ricos. Claro que muitos dos ricos têm mais condições de reagir à catástrofe, mas há outros que perderam tudo. Acho que isso pode forçar a minoria rica a ver a situação do país com olhos diferentes, com mais simpatia pelos haitianos comuns. Claro, a experiência histórica não recomenda otimismo, mas a catástrofe é tão grande que talvez possa mudar percepções e a maneira como as pessoas se tratam.

FOLHA - A clivagem entre pobres e ricos é a principal na sociedade haitiana?

FATTON - Certamente, é a chave. Estamos falando de 5% a 10% da população com algum recurso, 5% que vão muito bem e 70%, 80% que não têm nada. Temos divisões de cor, mas elas são menores se comparadas à clivagem entre pobres e ricos.

FOLHA - Mas os ricos ainda controlam o sistema político?

FATTON - Agora não há mais sistema político, não há governo. A comunidade internacional está no comando, o aeroporto está sob controle dos americanos. Antes do terremoto, apesar de o governo ter algumas tendências populistas, a situação estava claramente nas mãos da minoria rica.

FOLHA - Grupos ligados a Aristide haviam sido excluídos das eleições deste ano. Como vê isso?

FATTON - Acho que o presidente [René] Préval conseguiu dividir o Lavalas [movimento de Aristide] de tal forma que ele não pode mais mobilizar grandes segmentos da população. Aristide continua sendo popular, mas o movimento foi dizimado. Ao mesmo tempo, é improvável que as principais potências, EUA e França, aceitem a volta de Aristide.

FOLHA - E isso o senhor considera positivo ou negativo?

FATTON - Difícil dizer. Aristide é uma figura muito carismática, mas ao mesmo tempo há hoje uma forte oposição a ele, que não vem só da elite, mas de setores que costumavam apoiá-lo. Seu poder diminuiu. Por outro lado, o terremoto pode dar a ele uma chance de se reafirmar, o que vai depender do resultado da operação de socorro e do que virá depois dela. Se a operação for mal administrada, pode haver uma reemergência do Lavalas, se não necessariamente da figura de Aristide.

FOLHA - Se Préval foi tão hábil em dividir o Lavalas, por que seu governo é instável, já no terceiro premiê?

FATTON - O governo se tornou instável depois dos distúrbios contra o aumento do preço dos alimentos [em março de 2008]. Foi um momento de crise. Mas não acho que você deva olhar para as trocas de primeiro-ministro como sintoma de instabilidade. Elas geralmente significam apenas transferir pessoas para novos cargos, mas não mudam a estrutura.

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