20 janeiro, 2010

Haiti: humanitarismo e política internacional

Haiti: humanitarismo e política internacional


JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA

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O Haiti é o novo palco para a exibição dos interesses e das quedas de braço do sistema internacional em momento de redesenho de hierarquias
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O MUNDO se curvou aos fatos. O esforço humanitário é urgente para garantir o mínimo diante das consequências indeléveis do terremoto no Haiti. A cooperação é o lema, e todos querem fazer parte dos difíceis trabalhos de salvamento e proteção de desamparados pela imperiosa natureza e pela imprudência dos homens.
A tragédia haitiana, porém, se faz dentro da reedição das duras disputas da política internacional do momento. Depois de Copenhague, onde pesou o arranjo sino-americano, o Haiti é o novo palco para a exibição dos interesses e das quedas de braço do sistema internacional em momento de redesenho de hierarquias.
As grandes potências que minguaram recursos e esforços diplomáticos para o alívio da pobreza no Haiti e em países miseráveis que o mundo ainda abriga são as mesmas que agora coordenam a operação de aplainar os cemitérios do país caribenho. Silenciou-se repentinamente o discurso monocórdio do combate irracional e linear ao chamado "terrorismo internacional", conceito ainda não bem definido, de Bush a Obama.
Tudo agora é humanitarismo nas lágrimas de crocodilo dos líderes cínicos. Apenas agora, já tarde, ouvem-se discursos de desdobrada atenção ao drama do Haiti. Atores e músicos famosos fazem o cordão de proteção ao humanitarismo renovado do Norte.
Não faltarão festivais em estádios e correntes de solidariedade romântica aos pobres haitianos.
Politiza-se a ajuda internacional, como no caso do clima, dos direitos humanos e de outros temas da agenda renovada das relações internacionais, quando o que importa é o esforço de salvar vidas.
Os chineses foram os primeiros a chegar à ilha caribenha. Inflacionaram o aeroporto combalido da capital do país e deixaram apenas espaço modesto para as aeronaves dos Estados Unidos, da Europa, do Canadá e do Brasil.
Os EUA correram atrás dos chineses, já vez que o Caribe é área de hegemonia natural e concêntrica dos ianques. Apresentaram-se como os únicos capazes de salvar os flagelados.
Acompanhar a cobertura internacional das agências britânicas, francesas e alemãs na Europa desses dias é hilário. O Haiti preencheu o noticiário monótono do frio polar e da neve.
É como se no Haiti não houvesse passado, apenas terra arrasada, em descoberta tardia das responsabilidades internacionais antes não reconhecidas. O silêncio das grandes potências em relação aos projetos brasileiros, apresentados anos atrás, de construção de infraestrutura e autonomia energética no Haiti é gritante.
O Brasil -em seu esforço de governo, da sociedade organizada e suas ONGs, mas em especial dos sacrifícios pessoais dos militares brasileiros, em missão convertida e gerenciada pela ONU no Haiti- vem sendo apenas discretamente reconhecido.
Obama agora quer oferecer os famosos 100 milhões de dólares que o Brasil já havia solicitado para obras de infraestrutura no país.
Aqui na Europa nada se sabe acerca da obra de Zilda Arns no Haiti nem que ministro brasileiro foi a primeira autoridade internacional a pisar o solo tremente da ilha. A lógica é mostrar Obama, Sarkozy e outros líderes do Primeiro Mundo isolados, a domesticar a opinião pública e os interesses eleitorais. Espero que o Brasil não faça o mesmo.
A coordenação dos esforços de construção do Haiti deve ser multinacional, a recordar que o esforço humanitário é só uma etapa para o longo prazo, de fortalecimento das instituições e da cidadania, ao lado da reconstrução social e econômica do país.
Passada a comoção do momento, vale acompanhar o dia seguinte. O esquecimento é em geral o que se espera. Pois que se tome uma lição do Haiti para a política internacional: o pêndulo está excessivamente angulado no realismo global e nos egoísmos nacionais. É hora de movê-lo para a dimensão humana das relações internacionais, que prescinde do humanitarismo, para ser apenas humana a face desejável dos sonhos de um mundo melhor.

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JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA, 49, doutor em história pela Universidade de Birmingham (Inglaterra), é professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e pesquisador 1 do CNPq. É autor, entre outras obras, de "Relações Internacionais - Dois Séculos de História".

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