30 dezembro, 2009

11 de Setembro - Noam Chomsky

11 de Setembro - Noam Chomsky

Posfácio
Reflexões

Tem sido uma opinião amplamente disseminada que os ataques terroristas de 11 de setembro mudaram drasticamente o mundo, que nada será como antes, já que o mundo entra agora numa “era do terror” – aliás, este é o título de uma antologia de ensaios acadêmicos, publicados pelos scholars da Universidade de Yale, e outros, que consideraram os ataques com Anthrax ainda mais execráveis.
Não há nenhuma dúvida de que as atrocidades de 11 de setembro constituíram um evento de importância histórica. Não – lamentavelmente – por sua dimensão, e sim pela escolha de vítimas inocentes. Já se assumiu há algum tempo que, com as novas tecnologias, as potências industriais, provavelmente, perderão, na prática, o seu monopólio sobre a violência, retendo para si apenas uma enorme supremacia. Ninguém poderia ter previsto o modo tão específico como essas expectativas foram correspondidas, mas o fato é que o foram. Pela primeira vez, na história moderna, a Europa e seus agregados foram vítimas, em solo pátrio, da mesma espécie de atrocidades que, rotineiramente, promoveram no exterior. A história destes episódios ainda deve estar próxima demais para ser revista, e portanto o Ocidente pode muito bem preferir desconsiderá-la, mas as vítimas não o farão. A ruptura radical com o padrão tradicional, por certo, confere ao 11 de setembro o status de um evento histórico, e as suas repercussões serão bastante significativas.
Inúmeras questões cruciais foram levantadas ao mesmo tempo:

1 – Quem é o responsável?
2 – Quais seriam os motivos?
3 – Qual seria a reação mais adequada?
4 – Quais seriam as conseqüências a longo prazo?

Quanto à primeira pergunta, presumiu-se, de um modo bastante plausível, que os culpados seriam bin Laden e sua rede, a Al-Qaeda. Ninguém os conhece melhor do que a CIA, a qual, juntamente com as organizações que lhe são correspondentes entre os aliados dos EUA, saíram recrutando islâmicos radicais em diversos países e os organizaram como uma força militar e terrorista, e não para ajudar os afegãos a resistir à agressão russa, que seria um objetivo legítimo, mas, por razões corriqueiras de Estado, com cruéis conseqüências para os afegãos, depois que o Mujahiddin tomou conta da situação. A inteligência dos EUA, sem nenhuma dúvida, tem acompanhado bem de perto outros atos praticados por essas redes, desde o assassinato do Presidente Sadat, do Egito, 20 anos atrás, e com mais intensidade depois da tentativa de explodir o World Trade Center e muitos outros alvos, numa operação terrorista bastante ambiciosa, em 1993.
No entanto, a despeito do que deve ser a maior investigação promovida pela inteligência internacional em toda a História, tem-se mostrado dificílimo encontrar qualquer prova que determine quem foram os perpetuadores dos atentados de 11 de setembro. Oito meses depois dos atentados, o diretor do FBI, Robert Mueller, depondo no Congresso, pôde apenas dizer que a inteligência americana agora “acredita” que os ataques foram tramados no Afeganistão, embora planejados e deflagrados de algum outro lugar. E muito depois de descobrirem que o Anthrax é originário dos laboratórios bélicos do governo dos EUA, os responsáveis ainda não foram identificados. Tudo isso nos leva a compreender o quanto é difícil contra-atacar dos atos de terrorismo visando os ricos e poderosos, no futuro. No entanto, e mesmo a despeito da fragilidade das provas, a conclusão inicial a respeito do 11 de setembro pode se considerada correta.
Já quanto ao item 2, os estudiosos no assunto são praticamente unânimes em tomar ao pé da letra as palavras dos terroristas, que inclusive correspondem a seus atos dos últimos 20 anos: o objetivo deles, da maneira como entendem o problema, é expulsar os infiéis dos territórios muçulmanos, derrubar os governos corruptos instalados e sustentados por estes infiéis e instituir a versão extremista do Islã.
Um dado mais significativo, pelo menos para aqueles que esperam diminuir a possibilidade de que ocorram crimes similares, são as condições históricas em que o terrorismo nasce, e que lhes proporciona uma reserva em massa de solidariedade e compreensão para, no mínimo, parte de sua mensagem, e isso mesmo entre os que os desprezam e temem. Nas palavras patéticas de George Bush, “Por que será que nos odeiam?”, a questão não é absolutamente nova nem é tão difícil assim encontrar a resposta. Quarenta e cinco anos atrás, o presidente Eisenhower e sua equipe já discutiam o que chamavam de “uma campanha de ódio contra nós, no mundo árabe, não da parte dos governos, mas no povo”. A razão básica, e sobre isso fomos advertidos pelo próprio Conselho de Segurança Nacional, é o fato de os EUA apoiarem governos brutais e corruptos que não permitem nem a democracia nem o desenvolvimento, e fazem isso por conta da preocupação de “proteger os seus interesses sobre o petróleo do Oriente Médio”. The Wall Street Journal encontrou praticamente a mesma postura quando levantou a opinião de muçulmanos ricos, ocidentalizados, depois do 11 de setembro, sentimentos agora exacerbados por culpa de políticas específicas dos EUA em relação a Israel-Palestina e ao Iraque.
Os analistas geralmente preferem uma resposta mais cômoda: o ódio origina-se do ressentimento em relação a nossa liberdade e nosso amor pela democracia, suas imperfeições culturais sendo rastreadas desde séculos atrás, sua incapacidade de se inserir na forma de globalização ( da qual, eles, com satisfação, participam), e outras deficiências semelhantes. Mais cômoda; entretanto, talvez, pouco sábia.
Quanto à reação, sua terceira pergunta, a resposta é, sem dúvida, controvertida, mas pelo menos podemos afirmar que a reação deveria estar em acordo com os padrões morais mais elementares: se uma ação é certa em relação a nós, é certa para os outros; se é errada em relação aos outros, é errada para nós. Aqueles que rejeitam esse padrão declaram abertamente que as ações se justificam pelo poder de praticá-las; mas estes podem ser ignorados em qualquer discussão sobre a adequação das ações, de certo e errado. Alguém pode vir a perguntar o que restaria de toda a enxurrada de análises sobre a questão 3 (debates sobre “guerra justa” etc...) se este simples critério for adotado.
Para ilustrar com alguns poucos casos imunes a controvérsia, 40 anos se passaram desde que o presidente Kennedy ordenou que “os terrores da terra” fossem despejados sobre Cuba até que a liderança do país fosse eliminada, já que haviam tido a descortesia de ser bem-sucedidos em repelir uma invasão organizada pelos EUA. Com efeito, os mencionados terrores foram extremamente severos, mantendo-se pela década de 1990 afora. Vinte anos se passaram, desde que o presidente Reagan deflagrou uma guerra terrorista contra a Nicarágua, conduzida à base de bárbaras atrocidades e destruição disseminada, deixando dezenas de milhares de mortos, e o país, arruinado, talvez a um ponto irrecuperável – mas levando também a uma condenação dos EUA, por terrorismo internacional, pela Corte Mundial e pelo Conselho de Segurança da ONU (uma resolução vetada pelos EUA). No entanto, nem por isso há quem acredite que Cuba e Nicarágua tenham o direito de lançar bombas sobre Washington ou Nova York, ou de assassinar líderes políticos. E seria bastante fácil acrescentar diversos outros casos, ainda mais graves, chegando até o presente.
Considerando tudo isso, aqueles que aceitam padrões morais elementares têm algum trabalho ainda por fazer caso pretendam demonstrar que os EUA e a Inglaterra estiveram agindo corretamente ao bombardear os afegãos, de modo a obrigá-los a entregar pessoas que estariam sob suspeita dos EUA como responsáveis pelas atrocidades cometidas, o objetivo oficial da guerra, anunciado pelo presidente, quando o bombardeio começou, ou a derrubar seus mandatários, o objetivo anunciado muitas semanas mais tarde.
Os mesmos padrões morais impõem propostas mais ricas em nuanças quanto a quais seriam as respostas mais apropriadas às atrocidades terroristas. Michael Howard, o respeitado especialista em história militar anglo-americana, propôs: “uma operação policial conduzida sob os auspícios das Nações Unidas... contra uma conspiração criminal cujos membros deveriam ser caçados, presos, trazidos diante de uma corte internacional, onde receberiam um julgamento justo e, se declarados culpados, sentenciados na medida apropriada”(Guardian, Foreign Affairs). Isso parece bastante razoável, embora possamos perguntar qual seria a reação a tal sugestão caso a proposta fosse aplicada universalmente. Tal coisa seria impensável e, se tal sugestão chegasse a ser formulada, causaria apenas ultraje e horror.
Questões similares foram levantadas com relação à “Doutrina Bush” de “ataques preventivos” contra alvos sob suspeita de representarem alguma ameaça. Deve-se destacar que tal política não é uma novidade. Seus estrategistas de mais alto nível são, em sua maioria, remanescentes da administração Reagan, que argumentavam que o bombardeio à Líbia era justificável perante a Carta da ONU como “legítima defesa diante de um ataque futuro”. Os estrategistas de Clinton aconselharam “ataques preventivos” (incluindo ser o primeiro a lançar um ataque nuclear). E a doutrina tem seus antecedentes mais remotos. No entanto, a audácia de afirmar tal coisa com um direito é novidade, e não há segredo algum sobre a quem a ameaça é endereçada. O governo e os comentaristas estão enfatizando o mais claramente possível que se pretende aplicar a doutrina no Iraque. O elementar padrão de universalidade, entretanto, poderia ser utilizado aqui para justificar um terror preventivo contra os EUA. Claro, ninguém aceita uma tal conclusão. Mas, se estamos tão desejosos de adotar princípios morais elementares, questões óbvias podem ser levantadas e devem ser enfrentadas por aqueles que advogam ou toleram uma versão seletiva da doutrina da “reação preventiva”, que garanta tal direito exclusivamente àqueles que sejam poderosos o bastante para exercitá-lo, sem grande consideração pelo que o mundo possa pensar. E o ônus da prova não é leve – aliás, isso é algo que ocorre com freqüência, quando vemos a ameaça ou o uso da violência ser advogado ou tolerado.
Há, é claro, uma réplica simplista contra tais argumentos: NÓS somos bons, ELES são maus. Esse utilíssimo princípio bate praticamente qualquer outro argumento. As análises de alguns comentaristas, assim como de estudiosos, têm suas raízes neste princípio tão crucial quanto corrente, o qual não é sequer defendido, mas apenas afirmado. Vez por outra, embora raramente, algumas criaturas irritantes tentam contrapor-se ao cerne deste princípio apresentando um relato da história recente e da contemporânea. Aprendemos mais sobre normas culturais predominantes observando a reação e a interessante disposição de barreiras erguidas com o propósito de deter qualquer desvio que resvale para uma tal heresia. Nada disso, obviamente, é uma invenção dos centros de poder contemporâneos e da cultura intelectual dominante. No entanto, merece atenção, pelo menos daqueles que tenham algum interesse em compreender onde nos posicionamos e o que pode vir pela frente.
Vamos tratar resumidamente das últimas considerações: questão (4).
A longo prazo, suspeito que os crimes de 11 de setembro irão acelerar tendências que já estavam em curso: a Doutrina Bush, aqui apenas mencionada, é um exemplo disso. Como já se previra anteriormente, alguns governos ao redor do mundo aproveitaram-se do 11 de setembro como uma oportunidade para instituir ou intensificar programas duramente repressivos. A Rússia ficou muito satisfeita em unir-se à “coalizão contra o terror”, esperando com isso receber autorização para executar suas terríveis atrocidades na Chechênia, e não ficou desapontada. A China também aderiu, com alegria, e pelas mesmas razões. A Turquia foi o primeiro país a oferecer tropas para a nova fase da “Guerra contra o Terror”, como sinal de gratidão, assim declarou seu primeiro-ministro, à colaboração dos EUA à campanha do Governo Turco na sórdida repressão contra a população curda, levada a cabo com extrema crueldade e crucialmente apoiada pelo fluxo de armas provido pelos EUA. A Turquia foi bastante elogiada por suas vitoriosas campanhas de terrorismo promovido pelo Estado, inclusive algumas das piores atrocidades dos sombrios anos 1990, e foi recompensada pela avaliação de sua jurisdição sobre Kabul, quanto a protegê-la contra o terrorismo, por parte da mesma superpotência que forneceu os recursos militares, bem como apoio diplomático e ideológico para suas recentes atrocidades. Já Israel, de imediato, percebeu que teria a oportunidade de esmagar os palestinos, atacando-os então com brutalidade ainda maior e contando com apoio ainda mais sólido por parte dos EUA. E por aí vamos, a mesma coisa se repetindo pelo mundo todo...
Mais sociedades democráticas, incluindo aí os EUA, instituíram medidas para impor disciplinas às sua próprias populações e para instituir medidas impopulares sob o disfarce de “combate ao terror”, explorando sempre a atmosfera de medo e o apelo ao “patriotismo”... o que, na prática, significa: “Você, cale a boca, enquanto eu toco as coisas ao meu jeito, impiedosamente.” A administração Bush se valeu da oportunidade para fazer avançar seu ataque contra a maioria da população, e contra as gerações futuras, a serviço de escusos interesses corporativos que dominam a administração, superando qualquer parâmetro anterior.
Em suma, as previsões do primeiro momento foram amplamente confirmadas.
Como resultado efetivo, os EUA, pela primeira vez, têm bases militares de monta na Ásia Central. São importantes para posicionar favoravelmente as forças multinacionais americanas dentro do panorama atual do “grande jogo”, de modo a controlar os consideráveis recursos da região, mas também para completar o cerco em torno das principais fontes de energia do mundo, na região do Golfo. O sistema de bases americanas tendo como alvo o Golfo se estende do Pacífico aos Açores, mas a base confiável mais próxima, antes da Guerra do Afeganistão, era Diego Garcia. Agora, a situação melhorou muito, e uma intervenção de força, se for julgada apropriada, será enormemente facilitada.
A administração Bush entende a nova fase da “guerra contra o terror” (que, de muitos modos, reproduz a “guerra contra o terror” declarada pela administração Reagan, vinte anos antes) como uma oportunidade de expandir sua já excepcional vantagem militar sobre o resto do mundo e poder adotar novos métodos para lhe assegurar a dominação do planeta. O pensamento do governo foi articulado claramente pelos altos escalões quando o príncipe Abdullah, da Arábia Saudita, visitou os EUA, em abril, para instar o governo a prestar mais atenção às reações do mundo árabe ao seu irrestrito apoio à repressão e ao terror praticados por Israel. Na ocasião, foi-lhe dito que, efetivamente, os EUA não dão a mínima para a opinião dele e para a dos demais árabes. Como noticiou The New York Times, um alto funcionário explicou que “se pensam que éramos poderosos durante a Tempestade no Deserto, estamos dez vezes mais poderosos agora. Isso foi só para lhe dar uma idéia do que Afeganistão demonstrou sobre nossa capacidade”. Um veterano analista da área de defesa resumiu com precisão: “Todos eles vãos nos respeitar, por saberem que somos do tipo que bate forte, e não vão mais brincar conosco.” Também este padrão tem muitos precedentes históricos, mas no mundo pós 11 de setembro ganha um novo significado.
Não temos acesso aos documentos internos, mas é razoável especular que tais conseqüências estavam já embutidas nos propósitos iniciais do bombardeio ao Afeganistão: um aviso ao mundo sobre o que os EUA podem fazer se alguém sair da linha. O bombardeio à Servia foi empreendido por razões similares. Seu objetivo principal foi “garantir a credibilidade da OTAN”, como Blair e Clinton explicaram – sem estar se referindo à credibilidade da Noruega ou da Itália, mas a dos EUA e de seu principal cliente militar. Trata-se aqui de um tema comum na condução dos negócios de Estado e na literatura das relações internacionais; e, com alguma razão, como a história fartamente revela.
Sem me alongar, as questões básicas da sociedade internacional, ao que me parece, continuam as mesmas, mas o 11 de setembro com toda a certeza provocou mudanças, em alguns casos, com implicações significativas e nada agradáveis.

Fonte: Chomsky, Noam. 11 de Setembro. Ed. Bertrand Brasil, 2002.

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